Conceito

Antidepressivos e tranqüilizantes causam dependência?

* Márcio Bernik, Ivan Mário Braun e Fábio Corregiari

Uma das principais preocupações de quem precisa tomar antidepressivos ou tranqüilizantes (ansiolíticos) é se esses medicamentos podem causar dependência. Ou seja, mesmo pacientes que percebem que se beneficiam do uso destes medicamentos estão preocupados com o risco de ficarem “viciados”.
O receio da dependência decorre da generalização que se costuma fazer entre remédios que agem sobre o cérebro e as chamadas “drogas de abuso” ou “ilícitas”, como a maconha e a cocaína, que também agem sobre o cérebro, porém são usadas por sua capacidade de causar sensações agradáveis e desejadas como por exemplo euforia. De uma maneira bem simples a capacidade de uma substância que age sobre o cérebro causar dependência, ou viciar, é ligada a esta capacidade da causar euforia ou outra sensação extremamente agradável logo após o seu uso. Tal efeito reforça o desejo de consumo e leva à dependência.
Muitas pessoas acreditam que todas as medicações de uso psiquiátrico (psicotrópicas) podem ter esse resultado. A crença é corroborada por alguns profissionais não-médicos como psicólogos ou não-psiquiatras como clínicos gerais, que afirmam ao paciente que ele pode estar “dependente” do medicamento. Entretanto, nem todos os medicamentos que agem no cérebro têm este poder de causar dependência.
De fato, alguns indivíduos que param de tomar antidepressivos podem sentir-se mal. Esse efeito pode ter dois motivos. O primeiro é que a interrupção abrupta de algumas medicações, como a paroxetina e a venlafaxina, pode causar uma “síndrome de descontinuação” pela interrupção abrupta da ação de uma substância chamada serotonina sobre o cérebro. As suas características são náusea, tontura e outros sintomas desagradáveis. Para evitar o problema, basta suspender o remédio aos poucos, sob orientação médica. Após alguns dias a sensação desaparece o nunca o indivíduo vai apresentar “fissura” e “recair do uso”.
Uma segunda situação diz respeito ao retorno dos sintomas, que costuma ocorrer, em alguém que já está bem, pelo menos 4 a 6 semanas após a suspensão do antidepressivo. Nesse caso, o medicamento não teve um efeito curativo, apenas controlou as manifestações do transtorno. Trata-se de uma ocorrência bastante comum, uma vez que a depressão e vários outros distúrbios tratados com antidepressivos podem ser crônicos e exigem um tratamento prolongado. A solução é continuar com o uso e manter o acompanhamento médico.
A verdadeira síndrome de dependência ocorre, por exemplo, com o álcool, o tabaco e substâncias ilegais. O comportamento do usuário passa a girar em torno de como conseguir e consumir drogas, e o restante da vida acaba esquecido. O problema raramente ocorre com antidepressivos. Os relatos médicos referem-se a apenas uma medicação da categoria, a amineptina, com esse potencial. Um caso de dependência também já foi verificado com a tranilcipromina. Vale ressaltar que os pacientes que ficaram dependentes desses remédios já haviam usado outras drogas de forma abusiva, havendo assim uma propensão para a dependência de substâncias.
Na categoria dos tranqüilizantes, a questão da dependência merece ser debatida com mais cuidado. É fato que os barbitúricos, basicamente os de ação curta, são os que podem causar dependência. Entretanto, essas substâncias não são mais usadas como ansiolíticos ou hipnóticos. Desde o início dos anos 60 foram sendo substituídos pelos benzodiazepínicos, cujas principais vantagens eram justamente o menor risco de dependência e menor risco de morte nos casos de envenenemento.
Os benzodiazepínicos, por sua vez, também podem gerar uma síndrome de abstinência se o tratamento for interrompido abruptamente. Está chance será sempre maior se o tempo de uso for muito longo (anos), se as doses usadas forem muito altas ou ainda no caso de uso de benzodiazepínicos de ação curta ou ultra-curta como o triazolam , o midazolame o flunitrazepam. Os sintomas mais comumente relatados são ansiedade e insônia – justamente aqueles para os quais os medicamentos foram prescritos em primeiro lugar. Em alguns casos os sintomas tornam-se mais intensos que antes do tratamento. Em situações mais graves, felizmente raras, há risco de convulsões. Esses efeitos configuram uma dependência fisiológica ou física, basta interromper seu uso de forma gradual, sob orientação médica, para evitar episódios de abstinência.
Pacientes com transtornos de ansiedade também podem sofrer recorrência de sintomas ao interromper, mesmo que de forma gradual, o uso de um benzodiazepínico. Muitos retomam a utilização do medicamento. No entanto, como no caso da depressão, não se trata de um remédio que causou dependência, mas sim de um transtorno que não foi curado.
É incomum que os benzodiazepínicos causem síndrome de dependência de substância, coma s alterações comportamentais previamente descritas. Os benzodiazepínicos com maiores chances de causar vício são os mais potentes, com início e término de ação rápidos, principalmente quando administrados por vias que potencializam a rapidez de sua ação (injeção nas veias e aspiração pelo nariz). Os relatos de dependência química de benzodiazepínicos referem-se a pessoas que abusam de outras drogas e/ou têm transtornos de personalidade.
Em resumo, a síndrome de dependência, verificada com o álcool, a cocaína, a maconha e a nicotina, entre outros, caracteriza-se não apenas pelo uso da substância e a dificuldade em interrompê-lo, mas também pelo consumo compulsivo, em doses cada vez mais freqüentes, perda de controle e recaídas de utilização meses ou anos após a interrupção. Esses eventos não ocorrem com a maioria dos usuários de antidepressivos e benzodiazepínicos. Desde que os médicos prescrevam essas drogas com cuidado, os benefícios são imensamente maiores que os riscos.

* Márcio Bernik é médico psiquiatra formado pela FMUSP, doutor em Psiquiatria pela FMUSP e Professor Colaborador Médico do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Atualmente coordena o Ambulatório de Ansiedade do IPQ FMUSP.
Ivan Mario Braun é médico psiquiatra formado pela FMUSP, mestre pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Fábio Corregiari é médico psiquiatra formado pela FMUSP, atualmente aluno de pós graduação (doutorado) do Departamento de Psiquiatria da FMUSP
Edição: Solange Henriques

O que é eletroconvulsoterapia?

Diretrizes da Organização Mundial da saúde

A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento efetivo para certos subgrupos de indivíduos que sofrem de doenças mentais graves. Estes subgrupos consistem primariamente em pacientes portadores de transtornos depressivos graves, catatonia, mania e ocasionalmente certos pacientes com esquizofrenia. Dependendo da ocorrência de comorbidades com desordens médicas e/ou neurológicas, e da análise de risco em relação à necessidade do tratamento, a ECT pode ser tida tanto como procedimento de baixo como de alto risco. A ECT deve ser sempre administrada seguindo informações válidas e com o consentimento do paciente, e em concordância com os procedimentos de sua administração.

O objetivo deste artigo é mostrar a evidente eficácia e a segurança da ECT no tratamento da depressão e de outras doenças psiquiátricas, bem como determinar o seu uso combinado à farmacoterapia e estabelecer recomendações para a sua prática.

Desordens depressivas

A introdução da ECT no tratamento de doenças depressivas graves foi uma das intervenções de maior impacto na Psiquiatria. A ECT é o tratamento mais eficiente para as depressões graves, em comparação com todas as outras modalidades terapêuticas, e é tão seguro quanto o tratamento farmacológico. Desde a sua introdução no início da década de 1930, a ECT teve um importante desenvolvimento com o uso de anestesias e relaxantes musculares que permitiram maior segurança e aceitação. O retorno da ECT nos EUA em 1970 foi marcado por manifestações contrárias ao tratamento, que teve suas justificativas clínicas questionadas por imagens de barbárie, desumanidade e tratamento coercivo (Fink, 2001). Atualmente, algumas associações e sociedades psiquiátricas têm se posicionado em favor da ECT, e muitos países, tais como Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos, têm reconhecido essa modalidade terapêutica como um tratamento de eleição em situações clínicas particulares. Contudo, a comunidade médica favorável à ECT preocupa-se com o fato de que em muitos países em desenvolvimento a ECT é ainda realizada sem procedimentos anestésicos ou recursos tecnológicos da ECT moderna.
O tratamento efetivo dos transtornos depressivos baseia-se em uma minuciosa avaliação clínica, seguida da formulação e implementação do melhor plano de tratamento. A abordagem terapêutica da depressão pode ser grosseiramente subdividida em: (1) tratamento de fase aguda, que corresponde geralmente a um período inicial de seis a oito semanas, e que tem como objetivo atingir a remissão dos sintomas da doença aguda; (2) uma fase de manutenção, que se estende por um período adicional de 16 a 20 semanas, em que a administração contínua do tratamento visa à manutenção do estado de remissão, ou seja a prevenção de recaídas em curto prazo; (3) finalmente, o tratamento de manutenção em longo prazo, em que se estabelece uma abordagem profilática para reduzir a probabilidade de recidiva futura, ou seja, o ocorrência de um novo episódio depressivo na evolução tardia, assegurando a ulterior cura (remissão total) do transtorno depressivo. De um modo geral, a duração desta fase depende do número e da freqüência de episódios depressivos prévios e da estimativa de gravidade da doença.
A avaliação do paciente deve ser minuciosa, incluindo os seguintes aspectos (APA, 2000): A avaliação diagnóstica baseia-se na história clínica da doença, definindo-se, particularmente, os seguintes padrões: intensidade e gravidade dos sintomas; tratamentos recentes e padrões de resposta aos tratamentos prévios; doenças psiquiátricas coexistentes, incluindo o abuso de substâncias; história psiquiátrica prévia incluindo a freqüência e a gravidade dos episódios anteriores, a ocorrência de mania (depressão bipolar); a presença de doença física recente e anterior; a ocorrência de transtorno de personalidade pré-mórbido (ou inter-mórbido); e a participação de fatores estresse psicossocial no episódio atual ou em episódios recentes. A avaliação da história psiquiátrica deve ser complementada por um exame físico e pelo exame do estado mental, seguido de uma investigação laboratorial apropriada. O resultado combinado desta avaliação determinará o diagnóstico da doença atual, isto é, se se trata de um episódio depressivo maior, com ou sem sintomas melancólicos ou características psicóticas (depressão psicótica), bem como se o paciente está sofrendo de depressão bipolar ou unipolar. A avaliação da segurança da abordagem terapêutica de um episódio depressivo baseia-se fundamentalmente na estimativa do risco de dano que pode advir para o próprio paciente ou para outros indivíduos. A avaliação do risco baseia-se na presença de idéias de suicídio ou homicídio, que podem ser intencionais ou planejadas, de acordo com a psicopatologia do doente. É importante avaliar de forma mais objetiva possível o risco de auto- ou heteroagressão, assim como obter o histórico de comportamentos suicidas pregressos e recentes. A avaliação de comprometimento funcional baseia-se na preservação (ou não) da capacidade do paciente para o trabalho e para o convívio social e familiar. A avaliação do ambiente de tratamento visa a garantir a segurança do paciente e minimizar os riscos de autonegligência, preservando os objetivos fundamentais do tratamento. O ambiente de tratamento deve ser avaliado tanto para os paciente tratados ambulatorialmente, como para os pacientes sob regime de internação hospitalar, seja esta voluntária ou involuntária. Outros componentes de um bom tratamento psiquiátrico incluem o monitoramento da resposta terapêutica, da segurança e da evolução do estado psíquico do paciente. Ainda, é essencial o esclarecimento desses aspectos do tratamento para o paciente e sua família, que deve, idealmente, ter uma participação ativa no tratamento, além de auxiliar na identificação de quaisquer sinais de recidiva (APA Guidelines on Management 2000).

Tratamento agudo

A abordagem terapêutica para a fase aguda da doença inclui a escolha do tratamento farmacológico, das técnicas psicológicas associadas, e sua combinação com ECT.
A ECT é particularmente indicada para pacientes portadores de transtorno depressivo grave, definido de acordo com a intensidade, freqüência e duração dos sintomas depressivos, ou pela presença de manifestações psicóticas ou catatônicas, ideação suicida, ou ainda pela necessidade urgente de melhora, diante de rápida deterioração da saúde física. Nestas circunstancias, admite-se que a ECT é a primeira escolha de tratamento, associada ou não à farmacoterapia com antidepressivos e/ou antipsicóticos, quando indicados. A história prévia de melhora com ECT e a preferência do paciente por este tratamento são também considerações importantes para a formulação do tratamento.

Um recente estudo de metanálise (UK ECT Review Group, 2003), baseado na revisão sistemática dos estudos disponíveis na literatura que avaliaram a eficácia e a segurança da ECT nos transtornos depressivos identificou os seguintes aspectos:

  • (a) ECT versus ECT simulada: a ECT real (onde a corrente elétrica é efetivamente aplicada) mostrou-se significantemente mais eficiente que a ECT simulada (situação-controle, em que todos os procedimentos são idênticos à administração da ECT, porém não há aplicação de corrente elétrica) na redução dos sintomas depressivos, sendo que as diferenças entre os dois grupos desapareceram quanto o tratamento foi interrompido prematuramente; quanto aos efeitos adversos da ECT sobre a cognição, a capacidade de resgatar memórias remotas foi melhor entre os pacientes que receberam o tratamento efetivo do que entre aqueles submetidos ao procedimento simulado.
  • (b) ECT versus farmacoterapia: o tratamento com ECT foi significantemente mais eficiente que a farmacoterapia; a interrupção do tratamento foi menor no grupo tratado que recebeu ECT.
  • (c) Localização do eletrodo (ECT bilateral versus unilateral): a ECT bilateral foi mais efetiva do que a unilateral na redução dos sintomas depressivos. A administração da ECT bilateral pode mostrou-se associada a um comprometimento transitório da memória anterógrada, que pôde ser identificado em um período de até sete dias do término das aplicações. Os déficits observados, contudo, mostraram-se reversíveis; ou seja, o tratamento com ECT não determinou um comprometimento persistente das funções cognitivas. Em altas dosagens, a ECT unilateral pode ser tão efetiva quanto a bilateral, causando menos efeitos adversos sobre a cognição.
  • (d) Freqüência das aplicações: a ECT administrada com uma freqüência de uma, duas ou três vezes por semana determinou efeitos similares sobre os sintomas depressivos, não sendo tampouco observadas diferenças nas taxas de descontinuação do tratamento. Contudo, a administração mais freqüente da ECT esteve associada a uma maior incidência de efeitos adversos sobre a cognição.
  • (e) Intensidade do estímulo elétrico: a ECT em altas doses proporcionou uma redução mais efetiva dos sintomas depressivos, mas esteve associada a um maior comprometimento da memória anterógrada, ainda que preservando a memória autobiográfica.
  • (f) Tipo de estímulo (forma da onda): a administração do ECT sob a forma de pulsos breves é igualmente eficaz, havendo indícios de que o restabelecimento cognitivo dos pacientes pode ser mais rápido nesta modalidade do que nas formas tradicionais de administração do ECT (com ondas sinusoidais).

A ECT tem se mostrado altamente eficiente no tratamento da depressão psicótica, particularmente na presença de sintomas delirantes (Meyers et al, 2001; Birkenhager et al, 2003). Uma metanálise da eficácia da ECT na depressão psicótica, baseado na análise de 15 estudos controlados, mostrou que a ECT é superior à farmacoterapia e à ECT simulada, e que a presença de sintomas psicóticos foi um fator preditivo de uma melhor resposta à ECT (Kho et al, 2003). O estudo não mostrou evidências de uma menor latência de resposta superior em favor da ECT, ou de diferenças de resposta a depender do tipo de onda de estimulação.
Uma recente revisão sistemática da literatura avaliou a eficácia e a segurança da ECT em idosos, comparada com o uso de antidepressivos e com a ECT simulada (Cochrane Review, Vander Wuff et al, 2003). Muito embora somente três estudos puderam ser incluídos nessa metanálise, os resultados apontaram para uma maior eficácia da ECT quando comparada à ECT simulada. A eficácia da ECT unilateral sobre a bilateral, bem como os seus parâmetros de segurança, não puderam ser examinados, em função de limitações metodológicas dos estudos disponíveis. Em comparação com a farmacoterapia, pode-se admitir que, na idade avançada, a ECT bilateral está associada a uma maior probabilidade de se atingir a remissão, desde que feita com ajuste gradual da dosagem, e de forma continuada (O’Connor et al, 2001).
Em um estudo de revisão feito em 2003, nos Estados Unidos, pelo Instituto Nacional de Excelência Clínica (NICE, National Institute of Clinical Excellence), foram obtidas informações de 90 ensaios clínicos randomizados e controlados, que avaliaram a eficácia e a segurança da ECT no tratamento dos transtornos depressivos. O estudo concluiu que a ECT é mais efetiva que o tratamento com antidepressivos. Ainda, a ECT real mostrou-se mais efetiva que a ECT simulada após um curto período de administração, e os parâmetros do estímulo tiveram uma importante influência na eficácia da ECT: em geral, a aplicação bilateral mostrou-se mais efetiva do que a unilateral. Contudo, mediante aumento da intensidade do estimulo elétrico, a ECT unilateral pode ganhar eficácia adicional, porém às custas de uma redução da sua melhor tolerabilidade sobre as funções cognitivas. A respeito dos efeitos adversos cognitivos, a revisão mostrou que a ECT está associada a déficits cognitivos transitórios, particularmente nos casos em que a aplicação da ECT é feita bilateralmente, ou unilateralmente no hemisfério dominante; o comprometimento cognitivo decorrente da ECT é autolimitado, perdurando por no máximo seis meses após o término do tratamento. Não foram identificadas evidências de que a ECT pudesse estar associada a uma taxa de mortalidade mais alta do que aquela atribuível aos procedimentos anestésicos. Os estudos com técnicas de neuroimagem não mostraram evidências que a ECT possa causar dano cerebral. Também não há evidências de que os benefícios e a segurança da ECT não se apliquem aos pacientes com idade avançada. Não há registro de complicações da ECT na gravidez; quando avaliados criticamente os riscos globais, chega-se a uma conclusão favorável ao uso da ECT, em detrimento os antidepressivos, para o tratamento dos transtornos mentais graves durante a gravidez.

Continuação da farmacologia depois da ECT

Alguns estudos mostraram altas taxas de recidiva dos sintomas depressivos, depois de atingida a remissão com ECT. Cinco estudos controlados foram favoráveis à manutenção do tratamento com antidepressivos ou lítio, após a conclusão do tratamento de fase aguda com ECT (Abou-Saleh e Coppen, 1988).

Esquizofrenia

A eficácia da ECT no tratamento da esquizofrenia foi avaliada por meio de revisão sistemática da literatura, incluindo-se os poucos estudos controlados disponíveis e os relatos disponíveis (Cochrane Review, Tharyan e Adams, 2002). Os autores concluíram que a ECT proporcionou benefícios à maior parte dos pacientes, com menores taxas de recidivas psicóticas e menor tempo de permanência hospitalar, em comparação com os pacientes que receberam placebo ou ECT simulada. A eficácia da ECT isoladamente mostrou-se inferior à dos medicamentos antipsicóticos, mas a associação da ECT aos antipsicóticos proporcionou benefícios superiores aos dos antipsicóticos sozinhos, não estando essa intervenção necessariamente associada a um maior comprometimento da memória. Dados limitados sugeriram um maior prejuízo da memória visual nos pacientes tratados com ECT, em comparação os que receberam com ECT simulada. Em pacientes de meia-idade e em idosos portadores de esquizofrenia refratária, incluindo formas catatônicas, a ECT mostrou-se mais segura e eficaz em curto prazo (Suzuki et al, 2003) (Tang e Unguari, 2003).
O estudo de revisão do NICE (2003), com dados de 25 estudos randomizados, indicou que a ECT é eficaz no tratamento de episódios agudos de certos tipos de esquizofrenia, reduzindo a ocorrência de recaídas. De qualquer forma, os resultados não são conclusivos e o desenho metodológico desses estudos não reflete a pratica clínica usual. A literatura médica carece de ensaios clínicos apropriados que compararam a ECT aos antipsicóticos, assim como de estudos com pacientes portadores de esquizofrenia refratária que não tenham feito uso de clozapina. Concluindo, admite-se que a ECT, isoladamente, não seja mais eficiente do que a medicação antipsicótica; a combinação da ECT com a farmacoterapia talvez seja mais eficiente que a farmacoterapia sozinha; entretanto, as evidências disponíveis não permitem essa generalização.

Mania

A revisão do NICE (2003), baseada em quatro ensaios randomizados, indicou que a ECT pode ser útil para o controle rápido dos sintomas da mania e da catatonia. Essa impressão é sustentada pelos resultados de estudos observacionais; contudo, não há um consenso quanto às estratégias terapêuticas mais apropriadas. No transtorno bipolar resistente ao tratamento farmacológico, também há evidências de benefícios da ECT em regime de manutenção (Vaidy et al, 2003).

Outras indicações

Em determinadas condições de difícil manejo, como a catatonia, a ECT pode ser considerada uma excelente opção terapêutica. A catatonia, caracterizada por graves anormalidades da atividade motora, pode ocorrer em decorrência de transtornos humor e na esquizofrenia. Admite-se que esta condição caracteriza uma emergência psiquiátrica. Embora algumas intervenções farmacológicas possam ser eficientes, como a administração de alguns benzodiapínicos e barbitúricos, a ECT deve ser considerada no plano do tratamento inicial (MacCall, 1992). A ECT também deve ser considerada como um tratamento capaz de salvar vidas em certos casos de síndrome neuroléptica maligna – uma grave condição clínica que também cursa com sintomas catatônicos – em especial quando os tratamentos medicamentosos usuais não foram capazes de reverter o quadro nos primeiros dias (Trollor e Sachdev, 1999). A ECT é também indicada na mania grave e prolongada, especialmente quando os medicamentos mostraram-se ineficientes (Mukherjee et al, 1994). É também ocasionalmente indicada para um subgrupo de pacientes esquizofrênicos com sintomas catatônicos, ou na presença de sintomas importantes de depressão comórbida, como recusa alimentar ou pensamentos suicidas (Fink, 1997). A ECT também é ocasionalmente empregada em algumas desordens não relacionadas ao humor, incluindo alcoolismo, anorexia nervosa, transtorno obsessivo-compulsivo, distúrbios da personalidade, demências, e na doença de Parkinson (McCall, 2000). Evidentemente, faltam evidências para se preconizar o uso generalizado da ECT nessas condições. A depender do julgamento clínico, definido caso a caso, a ECT pode tornar-se a melhor opção terapêutica em condições clínicas particulares, tais como nos episódios de doença mental grave durante a gravidez, em idosos com saúde frágil, ou ainda em determinados quadros resistentes ao tratamento em adultos jovens ou crianças. Nesses casos, em vista dos possíveis riscos, os clínicos devem adotar precauções adicionais.

Riscos

A taxa de mortalidade associada à ECT é basicamente similar àquela associada aos procedimentos envolvendo anestesia geral, ou seja, um em cada cem mil casos tratados (1:100.000). Os eventos que resultaram em morte ocorreram quase que exclusivamente em função de complicações cardíacas. Mediante a observância das diretrizes de boa prática clínica, publicadas nos guias de referência, a ocorrência de complicações cardíacas sérias – como infarto do miocárdio, fibrilação ventricular, aneurisma – tornou-se rara, mesmo em pacientes com doença cardíaca pré-existente (Zielinsky et al, 1993). Quanto aos distúrbios cognitivos decorrentes do uso agudo da ECT, tais como amnésia retrógrada, anterógrada e confusão mental, admite-se amplamente que são transitórios e reversíveis e, na maioria dos casos, não representam um problema clínico dominante. As disfunções cognitivas associadas à ECT, que muitas vezes são difíceis de se diferenciar dos sintomas cognitivos da depressão, constituem-se em um componente sintomatológico extremamente desgastante para certos pacientes, e que deve ser sempre acompanhado com cautela. Os estudos controlados de neuroimagem não apresentaram qualquer evidência de que a ECT possa causar danos cerebrais (NICE 2003). Entretanto, as disfunções cognitivas associadas ao tratamento contínuo ou de manutenção com ECT ainda devem ser estudadas apropriadamente.

Contra-indicações

Não há contra-indicações absolutas para a ECT, mas existem certas restrições, tais como a presença de tumores ou infartos cerebrais, histórico de infarto no miocárdio recente ou arritmias cardíacas, marcapasso cardíaco, aneurisma, deslocamento de retina, feocromacitoma e doenças pulmonares. Essas condições clínicas estão entre as situações potencialmente perigosas, onde o uso da ECT pode ser considerado de alto risco, requerendo precauções adicionais (Stevens et al, 1996).

Considerações práticas

Seis a oito aplicações são, em média, necessárias para o tratamento efetivo de um episódio depressivo, podendo-se chegar a 12 aplicações ou mais, se não houver melhora clínica satisfatória com as primeiras. Para a mania aguda, o número médio é de oito a 12 aplicações, chegando-se, eventualmente, a 16, nos casos mais difíceis. Para os pacientes que se beneficiam rapidamente da ECT, atingindo a remissão do quadro depressivo com 6-8 sessões, mas que apresentam recidivas na evolução imediata, recomenda-se o prosseguimento das aplicações por período maior (Abrams, 1992). A ECT administrada três vezes por semana (como é usada nos EUA) tem eficácia comparável ao tratamento com duas aplicações semanais, conforme prática européia.
Recomenda-se o emprego da atropina para prevenir a ocorrência de bradicardia vagotônica; contudo, essa prática não é adotada universalmente pelos clínicos. A succinilcolina é utilizada como relaxante muscular e, como hipotônicos, são utilizados o etomidato, o pentotal e o metohexital.
Em relação às características do estímulo elétrico, os melhores resultados são obtidos com eletrodos bilaterais (em comparação com a ECT unilateral), e com ondas de pulso breve. Quanto à dosagem das aplicações, recomenda-se a utilização de carga elétrica de intensidade equivalente a 2 ou 2½ vezes aquela necessária para se atingir o limiar convulsivo. Tais cargas são mais eficazes do que as de intensidades próximas ao limiar convulsivo. Entretanto, a dosagem elétrica ótima e o local de colocação do eletrodo devem ser definidas para cada paciente. A ECT de manutenção pode proporcionar benefícios adicionais, sustentando por mais tempo a resposta positiva ao tratamento inicial. Recomenda-se, por exemplo, uma aplicação a cada duas ou quatro semanas, durante os 4-6 meses subseqüentes ao tratamento agudo. Os estudos sistemáticos para avaliar estas formas de tratamento estão em andamento, com dados ainda inconclusivos. A avaliação clínica cuidadosa e prudente são amplamente recomendadas para a prescrição segura da ECT.

Administração de psicotrópicos durante a ECT

Há controvérsias a respeito da administração concomitante de antidepressivos e ECT. Na ausência de resposta antidepressiva adequada, a descontinuação dos medicamentos parece uma conduta razoável; por outro lado, a descontinuação abrupta dos antidepressivos, na vigência de um quadro sintomático, pode resultar na exacerbação dos sintomas (McCall, 2001). Revisões sobre as associações entre ECT e medicamentos psicotrópicos apontam para a ocorrência de sinergismo (ECT + neurolépticos em psicoses, mas não em depressão), antagonismo (ECT + benzodiazepínicos ou anticonvulsivantes), e toxicidade, com maior risco de reações adversas, tais como confusão mental (ECT + lítio) ou complicações cardiovasculares (ECT + inibidores da MAO). A administração concomitante de compostos como hormônios tiroideanos, pindolol ou cafeína, como uma estratégia de potencialização da ECT, ainda não alcançou um consenso geral.

Perspectivas

Após 70 anos desde a sua introdução, pode-se dizer que a terapia eletroconvulsiva representa uma intervenção eficiente para várias desordens psíquicas. Em relação a suas perspectivas futuras, a otimização dos procedimentos necessários para o tratamento, assim como a definição dos parâmetros ideais para a continuação e manutenção do tratamento devem ter prioridade nas pesquisas. No nível teórico, a elucidação dos mecanismos de ação da ECT é esperada com o avanço do nosso conhecimento, não apenas no tratamento da depressão, mas também da natureza biológica da doença.

Guias e recomendações

  • A ECT deve ser considerada somente depois de uma avaliação diagnóstica cuidadosa e uma extensiva avaliação do balanço entre os benefícios potenciais e os problemas envolvidos, tais como: o risco anestésico, a condição física do paciente, os eventos adversos anteriores (particularmente perda cognitiva), além das eventuais conseqüências do não tratamento.
  • A ECT somente deve ser administrada após a obtenção do consentimento informado dos pacientes que mantêm a capacidade de tomar tal decisão, ou de seus responsáveis, na situação contrária; nesses casos, devem ser adotados guias apropriados para pacientes incapacitados.
  • A ECT é fortemente recomendada como tratamento agudo inicial para os episódios depressivos graves, particularmente em pacientes com sintomas psicóticos (depressão psicótica), ou nos casos de depressão com risco de suicídio, de auto- ou heteroagressão, ou ainda nos casos de negligência pessoal e deterioração da saúde física. A ECT é eficaz no tratamento da depressão resistente aos antidepressivos e no controle rápido dos sintomas da catatonia e dos episódios de mania aguda grave e prolongada. Para minimizar o risco de recaída depressiva após a remissão obtida com a ECT na fase aguda, recomenda-se o uso continuado da farmacoterapia com antidepressivos por um período de 16-20 semanas após a remissão dos sintomas da doença. A ECT não é recomendada para o tratamento geral da esquizofrenia. As evidências são insuficientes em relação aos benefícios em longo prazo e dos riscos da manutenção da ECT nos transtornos depressivas.
  • Considerações cuidadosas devem ser tomadas acerca dos riscos do tratamento em pacientes grávidas, em idosos e em crianças.
  • A ECT é um tratamento seguro; os efeitos adversos cognitivos são freqüentes, porém transitórios, destacando-se o comprometimento da memória de curto e longo prazo. A ECT bilateral está associada a um maior comprometimento cognitivo, quando comparada à ECT unilateral aplicada no hemisfério dominante. A freqüência das aplicações de ECT, assim como outros parâmetros técnicos, têm um impacto pequeno na sua eficiência.

Texto traduzido por Bárbara Fonseca Nogueira, pós-graduanda do LIM27.

Fonte: Mohammed Abou-Saleh, Yiannis Papakostas, Iannis Zervas, and George Christodoulou, on behalf of the World Psychiatric Association

Referências

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O que são tranqüilizantes? 

* Márcio Antonini Bernik

Tranqüilizantes são uma denominação popular para um grupo de substâncias que atuam, “predominantemente, sobre a ansiedade e a tensão nervosa”. Na prática o termo se refere a medicamentos usados para diminuir a ansiedade, os ansiolíticos, ou para dormir, os hipnóticos.
O uso de ansiolíticos e hipnóticos é tão antigo quanto a medicina. Em escritos de todas as antigas culturas encontram-se relatos sobre o uso de substâncias capazes de produzir um certo grau de sedação, estado em que transcorriam rituais religiosos, mágicos ou mesmo alguns procedimentos “médicos”. Destas substâncias e ervas, o álcool sempre o mais comum. Até hoje é o fármaco mais usado nestas situações “sociais”.
A história recente dos ansiolíticos e hipnóticos começou com a síntese do ácido barbitúrico por. A.VON BAYER em 1862. No início do século XX os derivados barbitúricos começaram a ser usados como ansiolíticos e hipnóticos. Mais de 2500 derivados do ácido barbitúrico foram sintetizados, dos quais cerca de 50 introduzidos comercialmente. Até a década de sessenta do século passado, foram extensivamente prescritos. Um exemplo de um medicamento barbitúrico ainda muito usado como anticonvulsivante é o fenobarbital (Gardenal).
Na década de 1950, embora os barbitúricos fossem ainda amplamente utilizados, era reconhecida a sua capacidade de induzir tolerância e de causar dependência com o aparecimento de uma síndrome de abstinência tão intensa quanto à do álcool. Outra preocupação ainda maior era o grande risco de morte por envenenamento (como de fato ocorreu com diversas pessoas famosas como a atriz Marilyn Monroe).
Em 1955 o laboratório Roche sintetizou uma série de compostos que, baseando-se em sua presumida estrutura química, foram julgados inativos e, posteriormente, abandonados. Um destes compostos, o Ro 5-0690 (clordiazepóxido, Librium) foi inadvertidamente enviado para análise quando o laboratório passava por uma limpeza de rotina e suas propriedades farmacológicas sedativas e ansiolíticas foram descritas.
Depois do desenvolvimento dos benzodiazepínicos, como por exemplo, o clordiazepóxido, o diazepam (Valium), o clonazepam (Rivotril) e o lorazepam (Lorax), o uso dos barbitúricos foi esquecido.
Acredita-se que a grande popularidade que os benzodiazepínicos alcançaram entre os membros da classe médica e na população leiga deva-se à sua eficácia como ansiolíticos e hipnóticos, aliada à margem de segurança por eles oferecida. No início dos anos 60 publicaram-se vários relatos de sujeitos, mesmo crianças que sobreviveram à ingestão de doses maciças destes remédios.
Os ansiolíticos benzodiazepínicos atuam aumentando a atividade de um sistema inibidor muito importante para o funcionamento de nosso cérebro, o sistema GABA-érgico. Este nome deriva do neurotransmissor diretamente envolvido, o GABA (abreviação de “gamma-amino-butyryc acid” ou ácido gama-amino-butírico).
A partir da década de oitenta estudaram-se outros ansiolíticos não benzodiazepínicos, como a buspirona (Buspar).
Os benzodiazepínicos, se interrompidos abruptamente, podem causar uma síndrome de abstinência com ansiedade, insônia e, em casos mais graves, de pessoas que usavam doses muito altas por longo tempo, até convulsões. Isto caracteriza uma dependência fisiológica ou “física” ao benzodiazepínico. Entretanto mesmo nestas situações, são raras situações de abuso e este problema não pode ser confundido com uma “síndrome de dependência química”. Mais uma vez, basta interromper o uso lentamente, sob orientação médica.

* Márcio Bernik é médico psiquiatra formado pela FMUSP, doutor em Psiquiatria pela FMUSP e Professor Colaborador Médico do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Atualmente coordena o Ambulatório de Ansiedade do IPQ FMUSP. 

Violência e doença mental: fato ou ficção ?

*Wagner F. Gattaz

Em estudos histórico-antropológicos, J. Monahan (1992), Universidade da Virgínia, conclui que ‘a crença de que as doenças mentais estão associadas à violência é historicamente constante e culturalmente universal’. Esta percepção pública tem conseqüências na prática social (estigma) contra indivíduos portadores de doenças mentais. A estigmatização do doente mental é o maior obstáculo para sua reintegração social. Portanto, antes de aceitá-la devemos analisar criticamente, primeiro, se a associação existe de fato, e segundo, qual é a magnitude de seu efeito nos crimes de violência em geral.

Antes quero definir os termos. A expressão doença mental, como tem sido usada na mídia, inclui todo e qualquer desvio do comportamento, desde abuso de álcool e drogas até quadros psicóticos. Em senso estrito (e correto), devemos falar de doença mental quando nos referimos a quadros definidos de alterações psíquicas qualitativas, como por exemplo a esquizofrenia, as doenças afetivas (antes chamadas de psicose maníaco-depressiva) e outras psicoses. Por outro lado, existem alterações quantitativas, como a deficiência mental e os transtornos de personalidade, que representam ‘desvios extremos do modo como o indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente e, particularmente, se relaciona com os outros’. Portanto, não são doenças, mas extremos de um contínuo. Neste sentido usarei estes termos.

Em um estudo epidemiológico na Alemanha, H. Haefner e W. Boeker (1982) encontraram que não havia um excesso de doentes mentais dentre os criminosos violentos da década 1955-1964, quando comparados com a população geral. Encontraram também que a idade média do doente mental criminoso por ocasião do crime era 10 anos maior do que a do criminoso da população geral, sugerindo que a doença mental, ao contrário, retarda a expressão do ato de violência.

Seguiram-se inúmeros estudos sobre a associação doença mental-violência, incluindo a ampla investigação coordenada pelo ‘National Institute of Mental Health’ nos EUA (Epidemiological Catchment Area= ECA, Swanson et al. 1997). Estes estudos não encontraram uma associação, ou apenas uma associação discreta entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência. Entretanto, todos eles apontam para dois outros fatores invariavelmente associados à violência: o abuso de substancias tóxicas (álcool e drogas), e a presença do transtorno de personalidade anti-social. Os efeitos de álcool e drogas não surpreendem, visto que ambos enfraquecem o auto-controle e liberam o ato de violência. As características do transtorno de personalidade anti-social já são, em si, predisponentes para atos contra a sociedade: indiferença pelos sentimentos alheios; desrespeito por normas sociais; incapacidade de manter relacionamentos embora não haja dificuldades em estabelecê-los; baixo limiar para descarga de agressão e violência; incapacidade de experimentar culpa e aprender com a experiência, particularmente punição; e propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para o comportamento que levou ao conflito com a sociedade (Classificação Internacional de Transtornos Mentais CID-10).

O grupo de pesquisa liderado por H. Steadman (1998), New York, não encontrou diferença na prevalência da violência em doentes mentais sem abuso de substâncias, comparados com a população geral. O risco de violência em indivíduos da população geral com abuso de álcool ou drogas foi duas vezes maior do que em pacientes esquizofrênicos sem abuso. Este risco é potencializado quando álcool ou drogas coexistem em indivíduo portador de transtorno mental, segundo J. W. Swanson e colaboradores (1997), coordenadores do ECA-Project. O maior risco para expressão de violência ocorre na combinação de abuso de álcool/drogas com transtorno de personalidade anti-social.

Estes achados sugerem que a doença mental em senso estrito contribui muito pouco para a ocorrência de crimes de violência. A magnitude desta contribuição pode ser avaliada pelo estudo de maior impacto sobre doença mental e crime, realizado na Dinamarca e publicado em 1996 por S. Hodgins e colaboradores (1996). Os autores identificaram todos os indivíduos nascidos entre 1944 e 1947 (360.000 indivíduos). Quando estes indivíduos tinham 43 anos de idade, identificou-se através dos registros centrais quais tinham um registro de internações em hospitais psiquiátricos, e quais tinham sido condenados por infrações do código penal. Comparou-se então a freqüência e o tipo de crimes cometidos entre os indivíduos com e sem internação psiquiátrica, assim como entre os diferentes diagnósticos psiquiátricos. Encontrou-se uma maior freqüência de crimes de violência em pacientes que haviam sido hospitalizados do que em indivíduos sem internações psiquiátricas.

Assim, na Dinamarca, indivíduos que foram internados em hospitais psiquiátricos por doença mental tem um risco 4,5 vezes maior de praticar um crime de violência que indivíduos sem internação. Os riscos para outros transtornos aumentam até 8,5 vezes em pessoas com abuso de drogas. Fica claro que álcool e drogas, também em nosso meio um problema de saúde pública, contribuem mais para a violência que as doenças mentais.

Entretanto, estes dados são superestimados: Na Dinamarca existe uma assistência psiquiátrica exemplar. Todo o cidadão tem acesso gratuito a medicamentos e a tratamento psiquiátrico em uma rede de serviços complementares abertos, como ambulatórios, centros de reabilitação, oficinas abrigadas e apartamentos comunitários. Isto possibilita que a maior parte dos pacientes passe a maior parte de suas vidas fora do hospital. A internação fica reservada apenas para os casos mais graves, difíceis de serem tratados nos serviços complementares. J. Monahan e H.J. Steadman (1983) mostraram que pacientes com um comportamento agressivo terão uma chance maior de serem hospitalizados do que pacientes não agressivos com sintomas semelhantes.

Portanto, o critério de seleção para o estudo na Dinamarca, baseado em registros de internação hospitalar, já selecionou, a priori, uma amostra de pacientes mais agressivos do que a média dos doentes mentais, resultando em uma estatística inflacionada do número de crimes de violência. Mesmo com estas reservas metodológicas, os resultados deste estudo falam contra o estereótipo existente, pois mostram que a grande maioria de doentes mentais na Dinamarca (no mínimo 93 porcento, seguramente mais) não é violenta.

Estes dados não podem ser imediatamente importados para o Brasil. É plausível supor que os índices de crimes de violência em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro são maiores que na Dinamarca. Como se trata aqui de criminalidade intencional, portanto consciente, é possível que ela esteja aumentada apenas na população sem doença mental, diminuindo portanto o excesso relativo em doentes. Mas isto é uma hipótese que necessita de verificação experimental.

O fato é que a associação entre doença mental e violência, ao menos na intensidade em que tem sido noticiada, não tem base real. O indivíduo psicótico pode se tornar agressivo se estiver alcoolizado. Aliás, o não-psicótico também.

* Wagner F. Gattaz é Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Diretor do Laboratório de Neurociências (LIM-27)

Referências

Häfner, H. & Böker, W. – Crimes of Violence by Mentally Abnormal Offenders. Cambridge University Press, Cambridge, 1982

Hodgins, S., Mednick, S.A., Brennan, P.A., Schulsinger, F. & Engberg, M. – Mental disorder and crime. Evidence from a Danish birth cohort. Arch Gen Psychiatry 53: 489-496, 1996

Monahan, J. – ‘A terror to their neighbors’: beliefs about mental disorder and violence in historical and cultural perspective. Bull Am Acad Psychiatry Law 20: 191-195, 1992

Monahan, J. & Steadman, H.J. – Crime and mental disorder: an epidemiological approach. In: Tonry, M. & Morrias, N. (eds.) Crime and Justice: Na annual review of Research. The University of Chicago Press, Chicago, pp. 145-189, 1983

Swanson, J., Estroff, S., Swartz, M., Borum, R., Lachicotte, W., Zimmer, C. & Wagner, R. – Violence and severe mental disorder in clinical and community populations: the effects of psychotic symptoms, comorbidity, and lack of treatment. Psychiatry 60: 1-22, 1997