Temas em Psiquiatria

Antidepressivos e tranqüilizantes causam dependência?

* Márcio Bernik, Ivan Mário Braun e Fábio Corregiari

Uma das principais preocupações de quem precisa tomar antidepressivos ou tranqüilizantes (ansiolíticos) é se esses medicamentos podem causar dependência. Ou seja, mesmo pacientes que percebem que se beneficiam do uso destes medicamentos estão preocupados com o risco de ficarem “viciados”.
O receio da dependência decorre da generalização que se costuma fazer entre remédios que agem sobre o cérebro e as chamadas “drogas de abuso” ou “ilícitas”, como a maconha e a cocaína, que também agem sobre o cérebro, porém são usadas por sua capacidade de causar sensações agradáveis e desejadas como por exemplo euforia. De uma maneira bem simples a capacidade de uma substância que age sobre o cérebro causar dependência, ou viciar, é ligada a esta capacidade de causar euforia ou outra sensação extremamente agradável logo após o seu uso. Tal efeito reforça o desejo de consumo e leva à dependência.
Muitas pessoas acreditam que todas as medicações de uso psiquiátrico (psicotrópicas) podem ter esse resultado. A crença é corroborada por alguns profissionais não-médicos como psicólogos ou não-psiquiatras como clínicos gerais, que afirmam ao paciente que ele pode estar “dependente” do medicamento. Entretanto, nem todos os medicamentos que agem no cérebro têm este poder de causar dependência. 
De fato, alguns indivíduos que param de tomar antidepressivos podem sentir-se mal. Esse efeito pode ter dois motivos. O primeiro é que a interrupção abrupta de algumas medicações, como a paroxetina e a venlafaxina, pode causar uma “síndrome de descontinuação” pela interrupção abrupta da ação de uma substância chamada serotonina sobre o cérebro. As suas características são náusea, tontura e outros sintomas desagradáveis. Para evitar o problema, basta suspender o remédio aos poucos, sob orientação médica. Após alguns dias a sensação desaparece e o indivíduo nunca vai apresentar “fissura” e “recair do uso”.
Uma segunda situação diz respeito ao retorno dos sintomas, que costuma ocorrer, em alguém que já está bem, pelo menos 4 a 6 semanas após a suspensão do antidepressivo. Nesse caso, o medicamento não teve um efeito curativo, apenas controlou as manifestações do transtorno. Trata-se de uma ocorrência bastante comum, uma vez que a depressão e vários outros distúrbios tratados com antidepressivos podem ser crônicos e exigem um tratamento prolongado. A solução é continuar com o uso e manter o acompanhamento médico. 
A verdadeira síndrome de dependência ocorre, por exemplo, com o álcool, o tabaco e substâncias ilegais. O comportamento do usuário passa a girar em torno de como conseguir e consumir drogas, e o restante da vida acaba esquecido. O problema raramente ocorre com antidepressivos. Os relatos médicos referem-se a apenas uma medicação da categoria, a amineptina, com esse potencial. Um caso de dependência também já foi verificado com a tranilcipromina. Vale ressaltar que os pacientes que ficaram dependentes desses remédios já haviam usado outras drogas de forma abusiva, havendo assim uma propensão para a dependência de substâncias. 
Na categoria dos tranqüilizantes, a questão da dependência merece ser debatida com mais cuidado. É fato que os barbitúricos, basicamente os de ação curta, são os que podem causar dependência. Entretanto, essas substâncias não são mais usadas como ansiolíticos ou hipnóticos. Desde o início dos anos 60 foram sendo substituídos pelos benzodiazepínicos, cujas principais vantagens eram justamente o menor risco de dependência e menor risco de morte nos casos de envenenemento. 
Os benzodiazepínicos, por sua vez, também podem gerar uma síndrome de abstinência se o tratamento for interrompido abruptamente. Está chance será sempre maior se o tempo de uso for muito longo (anos), se as doses usadas forem muito altas ou ainda no caso de uso de benzodiazepínicos de ação curta ou ultra-curta como o triazolam , o midazolame e flunitrazepam. Os sintomas mais comumente relatados são ansiedade e insônia – justamente aqueles para os quais os medicamentos foram prescritos em primeiro lugar. Em alguns casos os sintomas tornam-se mais intensos que antes do tratamento. Em situações mais graves, felizmente raras, há risco de convulsões. Esses efeitos configuram uma dependência fisiológica ou física, basta interromper seu uso de forma gradual, sob orientação médica, para evitar episódios de abstinência. 
Pacientes com transtornos de ansiedade também podem sofrer recorrência de sintomas ao interromper, mesmo que de forma gradual, o uso de um benzodiazepínico. Muitos retomam a utilização do medicamento. No entanto, como no caso da depressão, não se trata de um remédio que causou dependência, mas sim de um transtorno que não foi curado.
É incomum que os benzodiazepínicos causem síndrome de dependência de substância, como as alterações comportamentais previamente descritas. Os benzodiazepínicos com maiores chances de causar vício são os mais potentes, com início e término de ação rápidos, principalmente quando administrados por vias que potencializam a rapidez de sua ação (injeção nas veias e aspiração pelo nariz). Os relatos de dependência química de benzodiazepínicos referem-se a pessoas que abusam de outras drogas e/ou têm transtornos de personalidade. 
Em resumo, a síndrome de dependência, verificada com o álcool, a cocaína, a maconha e a nicotina, entre outros, caracteriza-se não apenas pelo uso da substância e a dificuldade em interrompê-lo, mas também pelo consumo compulsivo, em doses cada vez mais freqüentes, perda de controle e recaídas de utilização meses ou anos após a interrupção. Esses eventos não ocorrem com a maioria dos usuários de antidepressivos e benzodiazepínicos. Desde que os médicos prescrevam essas drogas com cuidado, os benefícios são imensamente maiores que os riscos.

* Márcio Bernik é médico psiquiatra formado pela FMUSP, doutor em Psiquiatria pela FMUSP e Professor Colaborador Médico do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Atualmente coordena o Ambulatório de Ansiedade do IPQ FMUSP. 
Ivan Mario Braun é médico psiquiatra formado pela FMUSP, mestre pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. 
Fábio Corregiari é médico psiquiatra formado pela FMUSP, atualmente aluno de pós graduação (doutorado) do Departamento de Psiquiatria da FMUSP
Edição: Solange Henriques

O autismo é um transtorno invasivo do desenvolvimento, isto é, algo que faz parte da constituição do indivíduo e afeta a sua evolução. Caracteriza-se por alterações na interação social, na comunicação e no comportamento. Manifesta-se antes dos 3 anos e persiste durante a vida adulta. Há outros distúrbios do desenvolvimento que se enquadram no perfil de problemas autísticos, mas que não incluem todas as características da doença.
Basicamente, quatro fatores indicam a presença do autismo infantil: problemas de relacionamento social, dificuldade de comunicação, atividades e interesses restritos e repetitivos e início precoce.

Relacionamentos

A criança autista tem dificuldade em se relacionar com outros indivíduos. Assim, mantém-se distante, evita o contato visual, demonstra falta de interesse pelas pessoas e não procura conforto quando se machuca. Em 50% dos casos, o interesse social se desenvolve com o tempo, mas a reatividade, a reciprocidade e a capacidade de empatia permanecem prejudicadas. O autista tem dificuldade em ajustar seu comportamento ao contexto social e não consegue reconhecer ou responder adequadamente às emoções dos demais.
É comum, porém, que a criança tenha proximidade com os pais, desenvolvendo inclusive a afeição, mas é mais propensa a abraçar do que a aceitar ser abraçada. As interações sociais com os pares são restritas. Mesmo autistas adultos têm habilidade limitada de fazer amizades íntimas.

Comunicação

A dificuldade de comunicação afeta a compreensão e a expressão, o gestual e a linguagem falada. Metade dos autistas não conseguem desenvolver uma fala compreensível; a outra metade mantém atrasos nessa área. Uma minoria aprende palavras e até frases no período apropriado, mas depois perdem essa habilidade.
Quando a expressão verbal é desenvolvida, é tipicamente diferenciada e atrasada, com ritmo e entonações anormais. O indivíduo costuma repetir palavras ou frases (ecolalia), cometer erros de reversão pronominal (troca do “você” pelo “eu”), usar as palavras de maneira própria (idiossincrática), inventar palavras (neologismos), usar frases prontas e questionar repetitivamente. Normalmente o autista não mantém uma conversação, simplesmente fala para outra pessoa. Alguns usam a expressão verbal apenas para pedir coisas; outros, não percebem que o ouvinte não tem mais interesse no assunto. Os gestos são reduzidos e pouco integrados ao que está sendo dito. Metade das crianças autistas desenvolve uma fala compreensível até os 5 anos. Aquelas que não o tenham feito, dificilmente terão uma expressão verbal apropriada.

Interesses

Com relação às suas atividades e interesses, os autistas são resistentes a mudanças e mantêm rotinas e rituais. É comum insistirem em determinados movimentos, como abanar as mãos e rodopiar. Preferem brincadeiras de ordenamento (alinhamento de objetos, por exemplo) e têm fascinação por objetos ou elementos inusitados para uma criança (zíperes e cabelos, por exemplo). Costumam preocupar-se excessivamente com temas restritos, como horários fixos de determinadas atividades ou compromissos. Dificilmente brincam de faz-de-conta e quando isso ocorre, limitam-se a ações simples de um ou dois episódios, histórias ou programas de TV favoritos.

Apesar de ser dificilmente detectada no primeiro ano de vida, a doença pode se manifestar nesse período, caracterizada por um desenvolvimento anormal. Um dos sinais é a aversão ao colo. Em casos raros, a partir de uma certa idade, a criança entra numa fase de regressão e perde habilidades de interação social e comunicação adquiridas nos primeiros anos de vida.

Prevalência

Duas em cada mil crianças têm algum distúrbio autístico. Dessas, de 10% a 50% são portadoras do autismo infantil (a variação percentual decorre das diferentes formas de classificação da doença). A doença atinge aproximadamente 0,05% da população, e a ocorrência de novos casos é mais comum no sexo masculino, na razão de três homens para cada mulher afetada. Não há uma clara relação entre o autismo e a classe sócio-econômica, apesar de estudos mais antigos apoiarem essa teoria.
O retardo mental afeta a maioria dos autistas. Cerca de 50% dos portadores do distúrbio têm quociente de inteligência (QI) inferior a 50; 70%, menor que 70; e 95%, abaixo de 100. Como a fala nesses indivíduos é normalmente prejudicada, a avaliação do QI é feita com testes não-verbais. Autistas com retardo mental são propensos a se automutilar, batendo com a cabeça ou mordendo a mão, por exemplo.

Outros sintomas

Um terço dos autistas com retardo mental sofrem crises convulsivas, que começam a se manifestar dos 11 aos 14 anos. Mas o problema também afeta 5% dos autistas com QI normal. Além disso, muitas crianças autistas apresentam problemas comportamentais ou emocionais. A hiperatividade é freqüente, mas pode desaparecer na adolescência e ser substituída pela inércia. A irritabilidade também é comum e costuma ser desencadeada pela dificuldade de expressão ou pela interferência nos rituais e rotinas próprios do indivíduo. A alimentação em exagero é uma forma de comportamento ritualístico. O autista também pode desenvolver medos intensos, que desencadeiam fobias.
Cerca de 10% dos autistas perdem habilidades de linguagem e intelectuais na adolescência. O declínio não é progressivo, mas as capacidade intelectual perdida geralmente não é recuperada.
Na vida adulta, quase 10% dos autistas trabalham e são capazes de se cuidar. Raramente mantém bons amigos, casam-se ou tornam-se pais. Crianças com um QI inferior a 60 provavelmente se tornarão dependentes na vida adulta. Entretanto, quando o QI é mais alto e a fala é compreensível, os autistas têm 50% de chance de desenvolver um bom desempenho social.

Origem

Uma grande variedade de distúrbios relacionados ao autismo foram reportados na literatura médica. Para a maioria das crianças autistas sem uma disfunção correlata, as causas ligadas a fatores genéticos são as mais prováveis. Estudos com gêmeos sugerem que a hereditariedade está intimamente ligada ao transtorno e que a origem esteja numa combinação de genes, e não em um único gene isolado.
A taxa de recorrência de autismo entre irmãos é de aproximadamente 3% e varia de 10% a 20% para as formas variantes da doença. Nos casos de autismo associado a retardo mental profundo e severo, as causas podem estar mais ligadas a danos cerebrais do que a fatores genéticos.
Não há evidências de que problemas psicossociais ou eventos traumáticos na infância, como desatenção dos pais, influenciem o surgimento do autismo. Há duas teorias principais sobre a causa do autismo, nenhuma delas comprovada. A primeira sugere que o problema original está na incapacidade do autista de perceber que há diferenças entre seu estado mental e o dos outros. Assim, o indivíduo teria dificuldade em ver o ponto de vista dos demais, mas seria capaz de compreender ações mecânicas e comportamentais dos objetos e das pessoas. A outra hipótese diz respeito à função executiva do indivíduo, que geraria dificuldades de planejamento e organização.

Tratamentos

O tratamento mais adequado para crianças autistas inclui escolas especializadas e apoio dos pais. Elas geralmente se desenvolvem melhor em instituições educacionais bem estruturadas, em que professores têm experiência com autismo. Programas comportamentais podem reduzir a irritabilidade, os acessos de agressividade, os medos e os rituais, assim como promover um desenvolvimento mais apropriado.
Medicamentos que agem sobre o psiquismo não controlam os principais sintomas do autismo, mas podem atenuar os sintomas associados. Estimulantes são capazes de reduzir a hiperatividade, mas geralmente aumentam de forma intolerável os atos repetitivos. Doses baixas de neurolépticos costumam reduzir a agitação e as repetições e em dosagens mais altas podem reduzir a hiperatividade, a retração e a instabilidade emocional. No entanto, é preciso verificar se o benefício é superior aos problemas causados pelos efeitos colaterais dessas drogas.

Texto: Solange Henriques

Fontes: GOODMAN, Robert e SCOTT, Stephen: “Child Psychiatry” (Blackwell Science, 1997) e Bacy Fleitlich Bilyk, mestre e doutora em Psiquiatria Infantil pela Universidade de Londres e coordenadora do Projeto de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e na Adolescência (PROTAD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Contato: bacy@uol.com.br

* André Malbergier

A dependência química é uma síndrome caracterizada pela perda do controle do uso de determinada substância psicoativa. Os agentes psicoativos atuam sobre o sistema nervoso central, provocando sintomas psíquicos e estimulando o consumo repetido dessa substância. Alguns exemplos são o álcool, as drogas ilícitas e a nicotina.

Considerada uma doença, a dependência química apresenta os seguintes sintomas:

  • Tolerância: necessidade de aumento da dose para se obter o mesmo efeito;
  • Crises de abstinência: ansiedade, irritabilidade, insônia ou tremor quando a dosagem é reduzida ou o consumo é suspenso;
  • Ingestão em maiores quantidades ou por maior período do que o desejado pelo indivíduo;
  • Desejo persistente ou tentativas fracassadas de diminuir ou controlar o uso da substância;
  • Perda de boa parte do tempo com atividades para obtenção e consumo da substância ou recuperação de seus efeitos;
  • Negligência com relação a atividades sociais, ocupacionais e recreativas em benefício da droga;
  • Persistência na utilização da substância, apesar de problemas físicos e/ou psíquicos decorrentes do uso.

 

Prevalência

A dependência química é uma das doenças psiquiátricas mais freqüentes da atualidade. No caso do cigarro, de 25% a 35% dos adultos dependem da nicotina. A prevalência da dependência de álcool no Brasil é de 17,1% entre os homens e de 5,7% entre as mulheres, segundo o 1o Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no país, realizado em 2001 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O estudo revelou que quase 20% dos entrevistados já haviam experimentado alguma droga que não álcool ou tabaco. Entre elas, destacaram-se a maconha (6,9%), os solventes (5,8%) e a cocaína (2,3%).

É preciso observar que, nos últimos 10 anos, houve uma mudança no consumo da cocaína. Em alguns centros de atendimento a adictos, como o Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), do Hospital das Clínicas da USP, diminuiu o número de pacientes que injetam cocaína, ao passo que aumentou a quantidade de usuários do crack. Essa apresentação da cocaína atinge o sistema nervoso central de maneira mais rápida e intensa que a droga aspirada. A taxa de complicações associadas ao uso é maior, porque o crack rapidamente gera uma dependência grave e de difícil tratamento.

Tratamento

As pesquisas mostram que, após o tratamento da dependência, as recaídas são freqüentes: 50% nos seis primeiros meses e 90% no primeiro ano. Todavia, vale lembrar que se trata de uma doença crônica e que, se avaliada como tal, os resultados da terapia são semelhantes aos de outras enfermidades persistentes, como asma, hipertensão e diabetes.

As altas taxas de reincidência não significam que o tratamento seja ineficiente. O uso, reduzido ou suprimido com a terapia, é um dos parâmetros que medem a eficácia, bem como relações familiares e sociais, atividades profissionais, acadêmicas e de lazer e o não envolvimento com a Justiça.

Um dos fatores mais importantes para o sucesso do tratamento é a motivação, visto que muitos pacientes não se consideram doentes. Dependentes de drogas que não procuram assistência sofrem mais complicações associadas ao uso, como infecções (inclusive Aids, para os adeptos de drogas injetáveis), desemprego e atividades ilegais. A mortalidade também é maior entre esses indivíduos, causada principalmente por overdose, suicídio e homicídio.

Tratamento

Há duas abordagens no tratamento da dependência química: a psicoterapia e a farmacoterapia. O modelo psicoterápico mais bem fundamentado é o cognitivo-comportamental, que prevê abstinência da substância, evitação de situações que induzam ao consumo e treinamento para resistir ao uso em circunstâncias que não possam ser evitadas.

O tratamento tende a ser mais eficaz se acompanhado por atendimento familiar. Estimula-se também a procura de grupos de auto-ajuda, como Alcoólatras ou Narcóticos Anônimos. A internação é indicada em casos específicos, como risco de suicídio, agressividade, psicose e uso descontrolado da substância, que esteja impedindo a freqüência às consultas.

O uso de medicamentos para o tratamento da dependência de álcool tem apresentado bons resultados. Três substâncias já demostraram eficácia em estudos de avaliação. A primeira delas inibe a metabolização do álcool, o que provoca mal-estar, náuseas e alterações hemodinâmicas caso o indivíduo tome bebidas alcóolicas. É adequada para pacientes motivados, que conseguem atingir a abstinência, mas têm dificuldade para mantê-la. A medicação funciona como um inibidor de recaídas, já que o paciente, temendo passar mal, controla seu impulso para beber.

Outro medicamento adotado no tratamento diminui o efeito do álcool e, no curto prazo, está associado a um número maior de dias sem beber e quantidades menores de doses quando o paciente bebe. A terceira droga, por sua vez, diminui a excitação exagerada do sistema nervoso central na ausência do álcool.

Na dependência de nicotina, o tratamento farmacológico pode ser feito por meio da reposição de nicotina, que diminui sintomas e sinais da abstinência e reduz o risco de recaída nas primeiras semanas. As alternativas existentes são goma de mascar, adesivo, spray e inalador (as duas últimas ainda não estão disponíveis no Brasil). O uso de determinados medicamentos também é eficaz na redução das chances de recaída no primeiro ano de tratamento.

Quanto à dependência de cocaína, maconha e inalantes, não há provas suficientes da eficácia de algum medicamento.
Mesmo após o tratamento e a abstinência da substância psicoativa, não se considera o paciente curado. Por muitos anos, talvez indefinidamente, ele irá apresentar maior risco que a população em geral de desenvolver o uso abusivo ou a dependência da substância. Para a maior parte dos dependentes, a abstinência total é a opção mais segura para a doença não retornar.
A ampliação do conhecimento sobre o mecanismo de ação da dependência química, sobretudo nas formas de atuação sobre o chamado “circuito da recompensa”, deverá possibilitar o desenvolvimento de medicações cada vez mais específicas para o problema. Outra estratégia que já está sendo testada em seres humanos é o desenvolvimento de vacinas, especialmente para cocaína e nicotina.

* André Malbergier é professor do Departamento de Psiquiatria da FMUSP e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria da instituição.
Contato: amalbergier@uol.com.br

* Ricardo Moreno

A depressão é um doença que se caracteriza por um período mínimo de duas semanas em que a pessoa se sente triste, melancólica ou “para baixo”, com sensações de aperto no peito (angústia), inquietação (ansiedade), desânimo e falta de energia. O indivíduo permanece apático, perde a motivação, acha tudo sem graça ou sem sentido, torna-se pessimista e preocupado. Tal estado afeta o organismo como um todo e compromete o sono, o apetite e a disposição física.

A manifestação do quadro clínico é bastante variável. A depressão pode ser intermitente ou contínua, durar algumas horas ou um dia inteiro, durante semanas, meses ou anos. Além disso, a intensidade do sofrimento costuma mudar ao longo do tempo.

Tristeza x depressão

A depressão não deve ser confundida com “fossa” ou “baixo astral”. A tristeza faz parte da vida psicológica normal, assim como a alegria e outros sentimentos. Fica-se triste por motivos externos, como fatos, notícias ou acontecimentos desagradáveis, ou por estímulos internos, como recordações ou vivências negativas, que tenham algum significado para a pessoa. Quando o indivíduo está triste, consegue manter sua rotina – trabalhar, estudar, namorar etc – e desfrutar da vida, até mesmo sentir alegria (por exemplo, ao receber uma boa notícia ou se algo agradável acontecer). A tristeza geralmente é passageira e está diretamente relacionada a estímulos identificáveis.

O deprimido geralmente percebe que seus sentimentos diferem de tristezas sentidas anteriormente ou do estado negativo causado pelo luto. A depressão costuma ser mais duradoura que as simples oscilações normais do humor. Situações estressantes causam um sofrimento desproporcionalmente maior e mais prolongado. Tudo se transforma em problemas mais pesados e difíceis de se resolver.

Ao contrário de quem sente tristeza, o deprimido tende a se isolar. A pessoa triste procura se distrair e se ajudar, enquanto que o deprimido perde o interesse e a força de vontade e não consegue se alegrar como antes. Alguns passam a maior parte do dia se ocupando sem parar, encontrando nas atividades um meio de se esquecer da depressão. Podem ficar mal humorados, irritáveis e insatisfeitos, mas também podem se esforçar para aparentar bem-estar. Essa luta mina as forças já abaladas pela própria depressão e aumenta ainda mais a irritabilidade e a impaciência.

Sinais da depressão

O deprimido geralmente percebe que não está bem, mas nem sempre reconhece que se trata de uma doença e atribui o fato a situações de vida. A família e os amigos tendem a lhe atribuir falhas, como falta de vontade ou de esforço para reagir, preguiça, chantagem, defeito de caráter, pouca fé ou atividade, entre outras. Esse tipo de reação piora ainda mais o estado do paciente.

O indivíduo deprimido costuma apresentar os sintomas descritos a seguir. A presença de cada um dos três primeiros itens e pelo menos dois dos seguintes é suficiente para caracterizar a depressão. Sintomas isolados não são suficientes para o diagnóstico.

• humor depressivo ou irritabilidade, ansiedade e angústia;
• desânimo, cansaço fácil, necessidade de maior esforço para fazer as coisas;
• diminuição ou incapacidade de sentir alegria e prazer em atividades anteriormente consideradas agradáveis;
• desinteresse, falta de motivação e apatia;
• falta de vontade e indecisão;
• sentimentos de medo, insegurança, desesperança, desespero, desamparo e vazio;
• pessimismo, idéias freqüentes e desproporcionais de culpa, baixa auto-estima, sensação de falta de sentido na vida, inutilidade, ruína, fracasso, doença ou morte. A pessoa pode desejar morrer, planejar uma forma de morrer ou tentar suicídio;
• interpretação distorcida e negativa da realidade: tudo é visto sob a ótica depressiva, um tom “cinzento” para si, os outros e seu mundo;
• dificuldade de concentração, raciocínio mais lento e esquecimento;
• diminuição do desempenho sexual (pode até manter atividade sexual, mas sem a conotação prazerosa habitual) e da libido;
• perda ou aumento do apetite e do peso;
• insônia (dificuldade de conciliar o sono, múltiplos despertares ou sensação de sono muito superficial), despertar matinal precoce (geralmente duas horas antes do horário habitual) ou, menos freqüentemente, aumento do sono (dorme demais e mesmo assim fica com sono a maior parte do tempo);
• dores e outros sintomas físicos não justificados por outros problemas médicos, como dores de barriga, má digestão, azia, diarréia, constipação, flatulência, tensão na nuca e nos ombros, dor de cabeça ou no corpo, sensação de corpo pesado ou de pressão no peito, entre outros.

Intensidade

O paciente com depressão leve sente-se angustiado pelos sintomas e tem alguma dificuldade em continuar com o trabalho e as atividades sociais do dia-a-dia, mas provavelmente não irá parar suas funções completamente. Geralmente, consegue trabalhar com muito esforço e convive com a depressão às custas de sofrimento, redução na qualidade de vida, cansaço, mau humor e irritabilidade em graus variáveis. Seu desempenho fica aquém do que seria possível.

Na depressão moderadamente grave, existe uma dificuldade considerável de se manter atividades sociais, profissionais ou domésticas. O desempenho no cotidiano fica perceptivelmente comprometido.

Durante um episódio depressivo grave, é improvável que o paciente seja capaz de continuar com suas atividades, a não ser que seja de forma muito limitada. Normalmente, o indivíduo é incapaz de descrever seus sintomas em detalhes. Além da angústia ou da agitação, pode haver lentidão dos atos. Além do sentimento de inutilidade, baixa auto-estima e culpa, o pensamento de morte ou a idéia de suicídio são proeminentes. O risco de uma atitude fatal é elevado.

As depressões graves também podem causar delírios (crenças irreais, irracionais que não são compartilhadas pelos outros e não são passíveis de argumentação lógica) e alucinações (percepções e sensações fora da realidade, como ouvir vozes que não existem).

Pelas características clinicas, a depressão pode ser classificada como bipolar (alterna estados de euforia e depressão), psicótica (envolve delírios e/ou alucinações), atípica (padrão diferente do habitual), pós-parto, sazonal (relacionada à época do ano), melancólica ou endógena (forma mais típica) ou ser chamada de distimia (leve, crônica e de curso variável). A doença também pode ser originada por efeito de medicamentos, enfermidades e uso de drogas.

Causas

A depressão é uma doença. Há uma série de evidências que mostram alterações químicas no cérebro do indivíduo deprimido, principalmente com relação aos neurotransmissores (serotonina, noradrenalina e, em menor proporção, dopamina), substâncias que transmitem impulsos nervosos entre as células. Outros processos que ocorrem dentro das células nervosas também estão envolvidos. Ao contrário do que normalmente se pensa, os fatores psicológicos e sociais muitas vezes são conseqüência e não causa da depressão. Vale ressaltar que o estresse pode precipitar a depressão em pessoas com predisposição, que provavelmente é genética.

A prevalência (número de casos numa população) da depressão é estimada em 19%, o que significa que aproximadamente uma em cada cinco pessoas no mundo apresentam o problema em algum momento da vida. Uma pesquisa feita no Brasil identificou uma taxa de 17,9% entre 1464 pessoas de classe média, com idade superior a 18 anos na capital paulista.

Em 1996, um trabalho conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo Banco Mundial e pela Universidade de Harvard identificou a depressão unipolar (sem alternância no estado de humor) como a quarta principal doença incapacitante em todo o mundo. O ônus causado pelas enfermidades foi avaliado em termos de anos de vida perdidos por morte prematura ou vividos com limitação importante. A estimativa da OMS é de que a depressão passe para o segundo lugar em 2020, perdendo apenas para as doenças do coração.

Conseqüências

As conseqüências da doença dependem da gravidade e da duração do episódio depressivo, de sua identificação e do tratamento. Depressões leves, porém longas, trazem maior comprometimento social e profissional do que as formas mais graves de curta duração. Deprimidos graves, de modo geral, recebem tratamento mais precocemente, por serem diagnosticados com maior facilidade.

Entre as conseqüências estão perda do emprego ou suspensão do estudo, problemas de relacionamento, cansaço e distorção negativa dos fatos. O principal risco é o de suicídio. Essas tentativas devem ser levadas a sério, e a atenção ao deprimido precisa ser imediata. Quando não tratada, a depressão também está associada a maior risco de morte por doenças cardíacas. Ela pode piorar a evolução de outras enfermidades. Um dos motivos é que o deprimido descuida de si mesmo e dos tratamentos.

O episódio depressivo, se não tratado, dura em média de seis a oito meses. A reincidência das crises pode levar à cronificação, isto é, à persistência de sintomas, mesmo que em menor intensidade. Daí a necessidade do tratamento, que além de proteger o paciente, promove o alívio do sofrimento, reduz o prejuízo funcional e diminui o risco de morte.

O indivíduo que apresentou um episódio depressivo tem 50 % de chances de sofrer outra crise ao longo da vida. Para os que já passaram por duas ou mais ocorrências, esse percentual varia de 80 a 90 %, o que caracteriza a depressão recorrente. Muitos pacientes requerem tratamento por muitos anos, alguns por toda a vida. A depressão não tem cura, porém, com os tratamentos disponíveis, é bem possível que a pessoa leve uma vida normal.

Tratamento

O tratamento da depressão é essencialmente medicamentoso. Existem mais de 30 antidepressivos disponíveis. Ao contrário do que alguns temem, essas medicações não são como drogas, que deixam a pessoa eufórica e provocam vício. A terapia é simples e, de modo geral, não incapacita ou entorpece o paciente.

Os antidepressivos são administrados em doses menores no início, que são modificadas conforme o paciente melhora e passa a tolerar os efeitos colaterais. O efeito inicial demora, em média, de dez a 15 dias. Uma vez atingida a dosagem ideal, ela é mantida por pelo menos seis ou oito meses, mesmo que o paciente tenha melhorado totalmente, a fim de se evitar recaídas. Alguns pacientes precisam de tratamento de manutenção ou preventivo, que pode levar anos ou a vida inteira, para evitar o aparecimento de novos episódios.

A psicoterapia ajuda o paciente, mas não previne novos episódios, nem cura a depressão. A técnica auxilia na reestruturação psicológica do indivíduo, além de aumentar sua compreensão sobre o processo de depressão e na resolução de resolver conflitos, o que diminui o impacto provocado pelo estresse.

Em alguns casos, é necessário hospitalizar o paciente para protegê-lo ou para cuidar de comprometimentos físicos causados pela depressão. Em quadros muito graves ou que não respondam aos tratamentos convencionais, pode ser preciso aplicar o eletrochoque.

* Ricardo Moreno é professor do Departamento de Psiquiatria e coordenador do Grupo de Doenças Afetivas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (Gruda).
Contato: ricardo@cesame.com.br

Disfunção erétil é a incapacidade persistente e recorrente de se obter e/ou manter ereção suficiente para concretizar o ato sexual satisfatório. Mas para que o homem seja considerado impotente, é preciso que o problema se manifeste por pelo menos seis meses consecutivos, já que falhas ocasionais são comuns. Além disso, para se configurar como patológica, a disfunção deve causar sofrimento e trazer danos psicológicos ao seu portador.

Ao contrário do que se pensa, não é a idade que causa a dificuldade de ereção, mas sim as doenças que ela traz consigo. Conforme o homem envelhece, torna-se mais propenso a distúrbios como diabetes, hipertensão, hipercolesterolemia (colesterol alto) e doenças do coração, que são fatores de risco para a disfunção erétil. A obesidade, o uso de drogas, o abuso de bebidas alcoólicas, o tabagismo, o sedentarismo e os transtornos emocionais, entre eles a depressão, a ansiedade e o pânico, também prejudicam o desempenho sexual.

Envelhecimento

Todos esses itens, associados ou não, podem interromper o ciclo de resposta sexual, composto por desejo, excitação e orgasmo. São esses aspectos, e não o envelhecimento em si, que fazem com que 12,3% dos homens tenham disfunção erétil completa a partir dos 70 anos no Brasil; até os 40 anos de idade, este número é de 1,1%. Os dados são do Estudo da Vida Sexual do Brasileiro (EVSB), conduzido pelo Projeto Sexualidade, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, e coordenado pela psiquiatra Carmita Abdo. As causas mais comuns para o problema são o diabetes, a hipertensão, a depressão e a cardiopatia.

Um idoso saudável tem capacidade de ereção. Já um indivíduo diabético, por exemplo, não estará na mesma condição. A doença lesa as paredes dos vasos sangüíneos, dificultando a irrigação sangüínea do pênis. Cardiopatias também danificam os tecidos endoteliais dos vasos e do coração. Uma lesão no endotélio cardíaco provavelmente coincidirá com outra no endotélio peniano. No caso da depressão, há uma diminuição do estímulo para o desempenho sexual.

Por isso, a disfunção erétil é considerada sintoma de um quadro de doença física e/ou psíquica. No primeiro caso, ela é classificada como orgânica e, no segundo, como sendo de origem psíquica. Há também uma categoria denominada mista, que envolve tanto os fatores físicos quanto os psíquicos. Neste caso, o transtorno começa como orgânico, mas acaba se refletindo no psiquismo do indivíduo. Um portador de doença cardíaca, por exemplo, pode falhar durante um período e, devido a essa dificuldade, desenvolver depressão.

É fundamental que o problema seja discutido com os médicos, que devem incluir, em sua rotina, perguntas sobre a vida sexual do paciente durante a consulta. Existem exames específicos, mas, num primeiro momento, o alerta é dado pelo próprio portador da disfunção.

Prevalência

Cerca de 155 milhões de homens apresentam algum grau de disfunção erétil em todo o mundo. No Brasil, calcula-se que esse número esteja em torno de 11 milhões. Com o aumento da expectativa de vida no país, acredita-se que esse número deva aumentar ainda mais nos próximos anos.

Uma pesquisa realizada em 2003 investigou o comportamento sexual da população em 13 estados brasileiros. Ao todo, 7103 homens e mulheres com idades superiores a 18 anos responderam a um questionário. Os resultados mostraram que 45,1% dos homens têm algum grau de disfunção erétil: 1,7% de forma completa, 12,2%, em nível moderado e 31,2%, leve.

A boa notícia é que a disfunção erétil tem tratamento. Em primeiro lugar, o paciente deve se conscientizar da importância dos hábitos saudáveis de vida e colocá-los em prática. Por outro lado, houve uma grande evolução nos últimos anos com relação ao tratamento medicamentoso, com o advento dos inibidores da enzima fosfodiesterase 5 (PDE-5). Atualmente, estão disponíveis no mercado o sildenafil, o vardenafil e o tadalafil. Esses medicamentos mantêm o fluxo sangüíneo ativado no pênis por mais tempo, facilitando a ereção. No entanto, o efeito só ocorre se o homem tiver desejo, pois os fármacos não geram o estímulo sexual.

Tratamento

As medicações para disfunção erétil podem ter efeitos colaterais como enrubecimento da face, corrimento nasal, distúrbios na digestão, dor de cabeça e dispepsia, mas esses eventos são raros (7% a 8% dos casos) e pouco intensos. A única contra-indicação formal é o uso associado com medicações à base de nitratos, utilizadas no tratamento de doenças cardíacas. A combinação das drogas (nitratos + inibidores da PDE-5) pode ser fatal.

Para o sucesso da terapia, é essencial que a causa da disfunção erétil também seja reconhecida e tratada. A maioria dos casos tem a ereção recuperada com essas medicações. Porém, se as lesões dos vasos sangüíneos forem muito avançadas, a ereção só será recuperada com a colocação de próteses penianas, por meio de cirurgia.

A melhor forma de se evitar a disfunção erétil é a prevenção. Para tanto, o homem precisa manter hábitos saudáveis durante a vida, evitando engordar, beber em excesso, fumar, usar drogas, ficar ansioso ou estressado. Além disso, ele deve se precaver contra doenças sistêmicas e evitar o abuso de medicamentos que interferem na libido, entre outras medidas. A saúde sexual depende da saúde geral e nela se reflete.

Texto: Solange Henriques

Fonte: Carmita Abdo, professora associada do Departamento de Psiquiatria e coordenadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (ProSex) da FMUSP
Contato: prosexmail@uol.com.br

* Orestes Vicente Forlenza 

A doença de Alzheimer é um distúrbio neurodegenerativo, progressivo e geralmente de longa evolução, considerado a principal causa de demência na população. Afeta funções cognitivas como memória, capacidade de aprendizado, linguagem, atenção, capacidade visual e noção espacial.

Nos estágios iniciais, há alguma preservação da memória remota, mas conforme a enfermidade evolui, a incapacidade de lembrança torna-se generalizada. A dificuldade de aquisição de novas informações aumenta até não haver mais novos aprendizados. Na linguagem, ocorre perda de fluência verbal, esvaziamento de conteúdos e diminuição da compreensão, além de erros de leitura e escrita. Além disso, o paciente perde progressivamente habilidades visuoespaciais, como a capacidade de copiar desenhos.

Numa etapa avançada, a enfermidade traz dificuldades de expressão, movimentação e poder de reconhecimento perceptivo sensorial. As alterações psíquicas e comportamentais ocorrem em até 75% dos casos, comprometendo a vida social e ocupacional. Os sintomas incluem quadros depressivos e psicóticos (alucinações e delírios), apatia, agressividade, agitação psicomotora, condutas repetitivas, perturbações no ciclo de sono-vigília e mudanças nos hábitos de locomoção, como por exemplo, saídas a esmo e perambulações.

A análise dos cérebros de portadores da doença revela atrofia do córtex, camada periférica onde são realizadas as funções nervosas elaboradas, como os movimentos voluntários. A alteração é percebida principalmente na região localizada entre os lobos temporais e no córtex parietal, próximo aos ossos laterais do crânio.

No exame microscópico, observa-se perda de neurônios e degeneração da sinapse, transmissão de impulsos nervosos de uma célula para outra. A presença de estruturas compostas por massas granulares ou filamentosas, chamadas placas senis, e filamentos ao redor das células nervosas, denominados emaranhados neurofibrilares, comprovam a presença da doença de Alzheimer.

Incidência

A incidência da enfermidade na população eleva-se com a idade, dobrando a cada cinco anos a partir dos 60. O risco de um adulto adquirir a doença dos 60 aos 64 anos é de 0,7%; na faixa dos 90 aos 95 anos, a probabilidade aumenta para 40%.

Outros fatores de risco são histórico familiar de demência, alterações de cromossomos, traumatismo craniano e exposição ao alumínio. A doença é mais comum entre as mulheres.

A sobrevida costuma variar de 8 a 12 anos; contudo, formas mais graves podem progredir rapidamente, levando ao óbito em menos de dois anos.

Tratamento

O tratamento da doença de Alzheimer inclui estratégias farmacológicas e intervenções psicossociais para o paciente e seus familiares. Inúmeras substâncias psicoativas têm sido propostas para restabelecer ou preservar a cognição do paciente. A reposição da acetilcolina, substância do organismo que funciona como neurotransmissor, tem mostrado eficácia na melhora da capacidade cognitiva e do comportamento de portadores da doença. Os medicamentos usados nesse tipo de terapia são os inibidores da acetilcolinesterase, enzima que acelera a reação química entre a água e a acetilcolina. Essas drogas têm efeito sintomático discreto sobre a cognição, algumas vezes beneficiando as alterações psíquicas da demência. Acredita-se também que elas possam retardar a evolução natural da doença, possibilitando uma melhora temporária no estado funcional do paciente.

No Brasil, estão aprovadas outras medicações, que funcionam de maneira semelhante, porém com diferenças na rapidez de ação. Essas características devem ser levadas em conta na hora da escolha da droga que será prescrita ao paciente.

O tratamento das perturbações comportamentais e psíquicas é essencial no manejo clínico da doença. As manifestações psicóticas devem ser tratadas com neurolépticos, medicamentos de ação sedativa que não produzem sono, sempre com baixas dosagens e reavaliações periódicas.

Estados de extrema depressão e ansiedade requerem o uso de antidepressivos. No controle da agitação intensa ou dos distúrbios de sono, os antidepressivos sedativos são uma alternativa eficaz. Os hipnóticos, que tem efeito sonífero, devem ser usados com extrema cautela e por períodos reduzidos, porque podem prejudicar a cognição e ser de difícil abandono após o uso prolongado.

O tratamento efetivo da doença de Alzheimer é apenas em parte representado pelas drogas antidemência e pelos psicofármacos. Existem técnicas psicológicas específicas para o manejo desses pacientes, tais como terapias de orientação da realidade, de reminiscência e de validação, que devem ser aplicadas sempre que possível.

* Orestes Vicente Forlenza é psiquiatra e pesquisador do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (LIM-27)
Contato: forlenza@usp.br

* Mônica Santoro Haddad 

A doença de Huntington é um distúrbio hereditário e degenerativo, provocado por uma alteração genética e caracterizado por problemas motores e mentais. A principal característica é a coréia, movimentos involuntários que se manifestam por contrações musculares irregulares, espontâneas e transitórias. O sintoma está presente em mais de 90% dos portadores da enfermidade, que também apresentam emagrecimento intenso, mesmo que mantenham dieta adequada, e envelhecimento precoce.

Sinais clínicos

Na maioria dos casos, a coréia é a primeira manifestação da enfermidade e pode persistir até os estágios mais avançados. Cerca de 50% dos portadores desenvolvem rigidez muscular (hipertonia) em algum momento, embora a força da contração muscular seja normal. Com a evolução do quadro, os movimentos voluntários do paciente tornam-se mais lentos, e a intensidade dos involuntários aumenta, afetando cabeça, tronco e membros. É comum a dificuldade para articular palavras (disartria) e engolir alimentos (disfagia). Há também risco de asfixia.

O raciocínio e o comportamento também são afetados. A maior parte dos pacientes sofre perdas cognitivas, mas há uma relativa preservação da memória até as fases mais adiantadas. A capacidade de concentração e a memória de curto prazo diminuem com a evolução da doença. Sintomas psiquiátricos, como mudança de personalidade, irritabilidade, apatia, instabilidade emocional e agressividade, são freqüentes e podem preceder em anos as disfunções motoras. Transtornos do humor, principalmente depressão, afetam até 60% dos portadores. As psicoses, quando ocorrem, afetam especialmente os indivíduos jovens. O risco de suicídio deve sempre ser considerado, uma vez que a incidência é de quatro a seis vezes maior nas famílias afetadas pela doença.

Crises convulsivas são raras nos adultos, mas podem ocorrer principalmente quando a enfermidade é precoce. Nesses casos, é preciso atenção, pois o mal epiléptico pode ser fatal.

O tempo médio de sobrevida do paciente varia de 14 a 17 anos. As causas de morte geralmente estão relacionadas às complicações da doença, como por exemplo, infecções, asfixia e traumatismos crânio-encefálicos.

Origem

A doença foi descrita por George Huntington, em 1872. Em 1983, pesquisadores localizaram o gene que causa os sintomas numa região do cromossomo quatro. Dez anos depois, descobriu-se que no local havia uma repetição anormal de uma seqüência de substâncias chamadas nucleotídeos, que são como blocos construtores do DNA. A seqüência é formada pelos nucleotídeos citosina, adenosina e guanina (CAG) e codifica uma substância denominada glutamina.
Nos indivíduos sãos, o número de repetições da seqüência CAG é geralmente menor que 20; nos portadores da doença de Huntington, há sempre mais de 36 repetições, justamente na posição onde se encontra o gene defeituoso. A proteína codificada por esse gene, que ainda não tem função definida, foi denominada huntingtina. Pela análise do DNA de uma pessoa, verifica-se o número de repetições do CAG, o que indica se a pessoa é portadora ou não do defeito genéticoque causa a doença.
Por isso, o diagnóstico mais apurado é feito hoje por meio de testes genéticos. Em casos com suspeita deste diagnóstico, deve-se investigar a possibilidade de enfermidades com sintomas semelhantes, como a coréia hereditária benigna e discinesias tardias (movimentos involuntários causados por medicamentos). Exames complementares, como eletroencefalograma (EEG) ou exames de imagens, não indicam a presença da doença, mas ajudam a descartar outras patologias e acompanhar a evolução da moléstia.

Prevalência

Estima-se que a doença de Huntington afete de 30 a 70 pessoas em cada grupo de um milhão. Nos EUA, é tão freqüente quanto a hemofilia e a distrofia muscular. A moléstia atinge ambos os sexos e, embora tenha sido detectada em indivíduos de várias origens, parece ser mais freqüente em brancos.

O distúrbio geralmente se manifesta dos 40 aos 50 anos, mas pode surgir em qualquer idade. A forma juvenil é começa antes dos 20 anos, e a de início tardio, depois dos 50 anos. Filhos de indivíduos com doença de Huntington têm 50% de chance herdar o gene que provoca a enfermidade. Uma vez herdada a alteração genética, a enfermidade irá se manifestar inevitavelmente em alguma etapa da vida. Por outro lado, aqueles que não herdaram o gene não irão desenvolver a doença, tampouco seus descendentes.

Tratamento

Ainda não há cura para a moléstia, mas existem terapias para atenuar seus sintomas. Os movimentos involuntários e os distúrbios psiquiátricos são tratados com neurolépticos tradicionais e atípicos. Antidepressivos são úteis nos estados depressivos, e benzodiazepínicos, em alterações comportamentais. Fisioterapia e fonoaudiologia também podem auxiliar na manutenção da qualidade de vida dos doentes.
A melhor compreensão das bases moleculares da enfermidade tem permitido o desenvolvimento de pesquisas em busca de soluções terapêuticas eficazes, que tragam uma melhor perspectiva para as famílias afetadas. Cientistas buscam formas de interromper a evolução da doença ou, ao menos, torná-la mais lenta, além de procurar maneiras de restaurar as funções já comprometidas e de evitar que a doença se manifeste nos portadores assintomáticos do defeito genético .

* Mônica Santoro Haddad é médica-assistente da divisão de Neurologia e responsável pelo ambulatório de Doença de Huntington do Hospital das Clínicas da FMUSP
Contato: dfv@dfvneuro.com.br
Para saber mais:
http://www.hdsa.org
http://www.hda.org.uk
http://www.abh.org.br

* Cássio Bottino  

A doença de Parkinson é um distúrbio neurológico, progressivo e crônico, que afeta os movimentos causando tremores, lentidão, rigidez muscular e dificuldades na fala e na escrita. Foi definida pela primeira vez em 1817, pelo médico inglês James Parkinson. Naquela ocasião, ele descreveu seis casos de pacientes com “paralisia agitante” que não apresentavam “nenhum prejuízo dos sentidos e do intelecto”.

Sintomas

A causa do transtorno é desconhecida, mas sabe-se que está relacionada à morte de células nervosas (neurônios) produtoras da dopamina, que se localizam numa região conhecida como substância negra do cérebro. A dopamina é um neurotransmissor, ou seja, uma substância produzida pelo organismo que auxilia na transmissão dos impulsos nervosos de um neurônio para outro. Por isso, sua diminuição causa dificuldades motoras. O quadro clínico da doença de Parkinson é caracterizado pela progressão lenta de alterações neurológicas, como tremores, rigidez, instabilidade postural e lentidão anormal dos movimentos (bradicinesia). 

O tremor típico afeta os dedos ou as mãos, mas também pode atingir o queixo, a cabeça e os pés. Ocorre quando nenhum movimento está sendo executado – tremor de repouso – e pode variar durante o dia. Torna-se mais intenso quando o paciente está nervoso e pode desaparecer quando ele estiver completamente descontraído, chegando a desaparecer durante o sono. Os tremores podem afetar um ou os dois lados do corpo, com intensidades diferentes ou não.

A rigidez muscular afeta o modo de andar do indivíduo, que caminha arrastando os pés, com o corpo inclinado para a frente. A lentidão de movimentos é mais acentuada e evolui mais rapidamente que no envelhecimento natural. No início da doença, esse sintoma é pouco perceptível, mas aos poucos o portador apresenta uma demora maior na realização de tarefas cotidianas. Um dos sinais precoces da perda de movimentos é a diminuição da freqüência das piscadas de olhos.

O paciente também costuma apresentar raciocínio mais lento. Há um comprometimento da atenção, da concentração e da memória e uma perda de habilidades visuo-espaciais e de abstração, culminando com isolamento social, desinteresse generalizado e apatia.

A progressão da enfermidade varia muito entre os portadores, mas costuma ser vagarosa, regular e sem alterações bruscas. Em alguns casos, é tão lenta que a doença parece estabilizada.

Prevalência

Estima-se que o distúrbio afete 1% da população mundial com mais de 65 anos. O declínio das funções intelectuais é uma complicação freqüente dos estágios mais avançados. A prevalência de demência entre esses indivíduos varia de aproximadamente 15% a 20%, cerca de três vezes mais que na média população de mesma idade.

Não há evidências de que a doença de Parkinson seja hereditária. A maioria dos pacientes começa a apresentar sintomas a partir dos 50 anos. Apenas em casos mais raros, a enfermidade manifesta-se mais cedo. Estudos retrospectivos demonstram que a idade, e não a duração da doença, é o principal fator de risco para o surgimento da demência. Em portadores com menos de 65 anos, essa complicação é pouco comum, ao contrário do que ocorre com indivíduos acima dessa faixa etária que convivem com o distúrbio há bastante tempo.

Tratamento

O diagnóstico é feito por exclusão. O paciente é submetido a uma série de exames, para que se verifique a possibilidade de outras enfermidades estarem causando os sintomas parkinsonianos. Além disso, os médicos avaliam o histórico clínico do indivíduo e fazem uma avaliação neurológica.

A enfermidade não tem cura, mas pode ser atenuada. O tratamento consiste no controle dos sintomas e da evolução da doença, por meio de medicamentos e terapias. Entre as mais comuns estão a ocupacional, a fisioterapia e a fonoaudiologia. Em alguns casos, indicam-se as cirurgias.

A levodopa, ou l-dopa, é o principal medicamento usado no controle dos sintomas. No cérebro, ela se transforma em dopamina e supre a falta do neurotransmissor que está em escassez. No entanto, seu uso prolongado causa sérios efeitos colaterais, como os movimentos involuntários anormais. Outras drogas usadas para tratar a doença são os estimulantes dopaminérgicos, anticolinérgicos e inibidores da monoamino-oxidase-B e da catecol-o-metil-transferase, duas enzimas que digerem a dopamina.

Terapias complementares

A reeducação postural e a manutenção da atividade física por meio da fisioterapia é um complemento indispensável ao tratamento da doença de Parkinson. Os exercícios preservam a atividade muscular e flexibilidade. Na ausência de exercícios físicos, os músculos inativos tendem a se atrofiar e se contrair, aumentando a rigidez típica do parkinsoniano. A terapia ocupacional, por sua vez, ajuda o paciente a lidar com as tarefas cotidianas e a manter a atividade profissional. Já a fonoaudiologia é indicada para aqueles que têm falta de coordenação e redução do movimento dos músculos que controlam os órgãos da fala. A reabilitação da comunicação ajuda a manter uma fala compreensível e bem modulada.

As cirurgias consistem em intervenções em determinadas regiões do cérebro que controlam os mecanismos de rigidez e tremor: o núcleo pálido interno (palidotomia) e o tálamo ventro-lateral (talamotomia). Outra técnica, ainda pouco comum, é a implantação de um marcapasso cerebral, que controla os tremores. Essas intervenções, no entanto, não representam a cura da doença.

Cássio Bottino é médico-assistente, doutor em Medicina pela FMUSP e coordenador do Projeto Terceira Idade (Proter) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP
Contato: cbottino@usp.br
Para saber mais:
http://www.parkison.org.br

O que é eletroconvulsoterapia?

Diretrizes da Organização Mundial da saúde

A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento efetivo para certos subgrupos de indivíduos que sofrem de doenças mentais graves. Estes subgrupos consistem primariamente em pacientes portadores de transtornos depressivos graves, catatonia, mania e ocasionalmente certos pacientes com esquizofrenia. Dependendo da ocorrência de comorbidades com desordens médicas e/ou neurológicas, e da análise de risco em relação à necessidade do tratamento, a ECT pode ser tida tanto como procedimento de baixo como de alto risco. A ECT deve ser sempre administrada seguindo informações válidas e com o consentimento do paciente, e em concordância com os procedimentos de sua administração.

O objetivo deste artigo é mostrar a evidente eficácia e a segurança da ECT no tratamento da depressão e de outras doenças psiquiátricas, bem como determinar o seu uso combinado à farmacoterapia e estabelecer recomendações para a sua prática.

Desordens depressivas

A introdução da ECT no tratamento de doenças depressivas graves foi uma das intervenções de maior impacto na Psiquiatria. A ECT é o tratamento mais eficiente para as depressões graves, em comparação com todas as outras modalidades terapêuticas, e é tão seguro quanto o tratamento farmacológico. Desde a sua introdução no início da década de 1930, a ECT teve um importante desenvolvimento com o uso de anestesias e relaxantes musculares que permitiram maior segurança e aceitação. O retorno da ECT nos EUA em 1970 foi marcado por manifestações contrárias ao tratamento, que teve suas justificativas clínicas questionadas por imagens de barbárie, desumanidade e tratamento coercivo (Fink, 2001). Atualmente, algumas associações e sociedades psiquiátricas têm se posicionado em favor da ECT, e muitos países, tais como Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos, têm reconhecido essa modalidade terapêutica como um tratamento de eleição em situações clínicas particulares. Contudo, a comunidade médica favorável à ECT preocupa-se com o fato de que em muitos países em desenvolvimento a ECT é ainda realizada sem procedimentos anestésicos ou recursos tecnológicos da ECT moderna.
O tratamento efetivo dos transtornos depressivos baseia-se em uma minuciosa avaliação clínica, seguida da formulação e implementação do melhor plano de tratamento. A abordagem terapêutica da depressão pode ser grosseiramente subdividida em: (1) tratamento de fase aguda, que corresponde geralmente a um período inicial de seis a oito semanas, e que tem como objetivo atingir a remissão dos sintomas da doença aguda; (2) uma fase de manutenção, que se estende por um período adicional de 16 a 20 semanas, em que a administração contínua do tratamento visa à manutenção do estado de remissão, ou seja a prevenção de recaídas em curto prazo; (3) finalmente, o tratamento de manutenção em longo prazo, em que se estabelece uma abordagem profilática para reduzir a probabilidade de recidiva futura, ou seja, o ocorrência de um novo episódio depressivo na evolução tardia, assegurando a ulterior cura (remissão total) do transtorno depressivo. De um modo geral, a duração desta fase depende do número e da freqüência de episódios depressivos prévios e da estimativa de gravidade da doença.
A avaliação do paciente deve ser minuciosa, incluindo os seguintes aspectos (APA, 2000): A avaliação diagnóstica baseia-se na história clínica da doença, definindo-se, particularmente, os seguintes padrões: intensidade e gravidade dos sintomas; tratamentos recentes e padrões de resposta aos tratamentos prévios; doenças psiquiátricas coexistentes, incluindo o abuso de substâncias; história psiquiátrica prévia incluindo a freqüência e a gravidade dos episódios anteriores, a ocorrência de mania (depressão bipolar); a presença de doença física recente e anterior; a ocorrência de transtorno de personalidade pré-mórbido (ou inter-mórbido); e a participação de fatores estresse psicossocial no episódio atual ou em episódios recentes. A avaliação da história psiquiátrica deve ser complementada por um exame físico e pelo exame do estado mental, seguido de uma investigação laboratorial apropriada. O resultado combinado desta avaliação determinará o diagnóstico da doença atual, isto é, se se trata de um episódio depressivo maior, com ou sem sintomas melancólicos ou características psicóticas (depressão psicótica), bem como se o paciente está sofrendo de depressão bipolar ou unipolar. A avaliação da segurança da abordagem terapêutica de um episódio depressivo baseia-se fundamentalmente na estimativa do risco de dano que pode advir para o próprio paciente ou para outros indivíduos. A avaliação do risco baseia-se na presença de idéias de suicídio ou homicídio, que podem ser intencionais ou planejadas, de acordo com a psicopatologia do doente. É importante avaliar de forma mais objetiva possível o risco de auto- ou heteroagressão, assim como obter o histórico de comportamentos suicidas pregressos e recentes. A avaliação de comprometimento funcional baseia-se na preservação (ou não) da capacidade do paciente para o trabalho e para o convívio social e familiar. A avaliação do ambiente de tratamento visa a garantir a segurança do paciente e minimizar os riscos de autonegligência, preservando os objetivos fundamentais do tratamento. O ambiente de tratamento deve ser avaliado tanto para os paciente tratados ambulatorialmente, como para os pacientes sob regime de internação hospitalar, seja esta voluntária ou involuntária. Outros componentes de um bom tratamento psiquiátrico incluem o monitoramento da resposta terapêutica, da segurança e da evolução do estado psíquico do paciente. Ainda, é essencial o esclarecimento desses aspectos do tratamento para o paciente e sua família, que deve, idealmente, ter uma participação ativa no tratamento, além de auxiliar na identificação de quaisquer sinais de recidiva (APA Guidelines on Management 2000).

Tratamento agudo

A abordagem terapêutica para a fase aguda da doença inclui a escolha do tratamento farmacológico, das técnicas psicológicas associadas, e sua combinação com ECT.
A ECT é particularmente indicada para pacientes portadores de transtorno depressivo grave, definido de acordo com a intensidade, freqüência e duração dos sintomas depressivos, ou pela presença de manifestações psicóticas ou catatônicas, ideação suicida, ou ainda pela necessidade urgente de melhora, diante de rápida deterioração da saúde física. Nestas circunstancias, admite-se que a ECT é a primeira escolha de tratamento, associada ou não à farmacoterapia com antidepressivos e/ou antipsicóticos, quando indicados. A história prévia de melhora com ECT e a preferência do paciente por este tratamento são também considerações importantes para a formulação do tratamento.

Um recente estudo de metanálise (UK ECT Review Group, 2003), baseado na revisão sistemática dos estudos disponíveis na literatura que avaliaram a eficácia e a segurança da ECT nos transtornos depressivos identificou os seguintes aspectos:

  • (a) ECT versus ECT simulada: a ECT real (onde a corrente elétrica é efetivamente aplicada) mostrou-se significantemente mais eficiente que a ECT simulada (situação-controle, em que todos os procedimentos são idênticos à administração da ECT, porém não há aplicação de corrente elétrica) na redução dos sintomas depressivos, sendo que as diferenças entre os dois grupos desapareceram quanto o tratamento foi interrompido prematuramente; quanto aos efeitos adversos da ECT sobre a cognição, a capacidade de resgatar memórias remotas foi melhor entre os pacientes que receberam o tratamento efetivo do que entre aqueles submetidos ao procedimento simulado.
  • (b) ECT versus farmacoterapia: o tratamento com ECT foi significantemente mais eficiente que a farmacoterapia; a interrupção do tratamento foi menor no grupo tratado que recebeu ECT.
  • (c) Localização do eletrodo (ECT bilateral versus unilateral): a ECT bilateral foi mais efetiva do que a unilateral na redução dos sintomas depressivos. A administração da ECT bilateral pode mostrou-se associada a um comprometimento transitório da memória anterógrada, que pôde ser identificado em um período de até sete dias do término das aplicações. Os déficits observados, contudo, mostraram-se reversíveis; ou seja, o tratamento com ECT não determinou um comprometimento persistente das funções cognitivas. Em altas dosagens, a ECT unilateral pode ser tão efetiva quanto a bilateral, causando menos efeitos adversos sobre a cognição.
  • (d) Freqüência das aplicações: a ECT administrada com uma freqüência de uma, duas ou três vezes por semana determinou efeitos similares sobre os sintomas depressivos, não sendo tampouco observadas diferenças nas taxas de descontinuação do tratamento. Contudo, a administração mais freqüente da ECT esteve associada a uma maior incidência de efeitos adversos sobre a cognição.
  • (e) Intensidade do estímulo elétrico: a ECT em altas doses proporcionou uma redução mais efetiva dos sintomas depressivos, mas esteve associada a um maior comprometimento da memória anterógrada, ainda que preservando a memória autobiográfica.
  • (f) Tipo de estímulo (forma da onda): a administração do ECT sob a forma de pulsos breves é igualmente eficaz, havendo indícios de que o restabelecimento cognitivo dos pacientes pode ser mais rápido nesta modalidade do que nas formas tradicionais de administração do ECT (com ondas sinusoidais).

A ECT tem se mostrado altamente eficiente no tratamento da depressão psicótica, particularmente na presença de sintomas delirantes (Meyers et al, 2001; Birkenhager et al, 2003). Uma metanálise da eficácia da ECT na depressão psicótica, baseado na análise de 15 estudos controlados, mostrou que a ECT é superior à farmacoterapia e à ECT simulada, e que a presença de sintomas psicóticos foi um fator preditivo de uma melhor resposta à ECT (Kho et al, 2003). O estudo não mostrou evidências de uma menor latência de resposta superior em favor da ECT, ou de diferenças de resposta a depender do tipo de onda de estimulação.
Uma recente revisão sistemática da literatura avaliou a eficácia e a segurança da ECT em idosos, comparada com o uso de antidepressivos e com a ECT simulada (Cochrane Review, Vander Wuff et al, 2003). Muito embora somente três estudos puderam ser incluídos nessa metanálise, os resultados apontaram para uma maior eficácia da ECT quando comparada à ECT simulada. A eficácia da ECT unilateral sobre a bilateral, bem como os seus parâmetros de segurança, não puderam ser examinados, em função de limitações metodológicas dos estudos disponíveis. Em comparação com a farmacoterapia, pode-se admitir que, na idade avançada, a ECT bilateral está associada a uma maior probabilidade de se atingir a remissão, desde que feita com ajuste gradual da dosagem, e de forma continuada (O’Connor et al, 2001).
Em um estudo de revisão feito em 2003, nos Estados Unidos, pelo Instituto Nacional de Excelência Clínica (NICE, National Institute of Clinical Excellence), foram obtidas informações de 90 ensaios clínicos randomizados e controlados, que avaliaram a eficácia e a segurança da ECT no tratamento dos transtornos depressivos. O estudo concluiu que a ECT é mais efetiva que o tratamento com antidepressivos. Ainda, a ECT real mostrou-se mais efetiva que a ECT simulada após um curto período de administração, e os parâmetros do estímulo tiveram uma importante influência na eficácia da ECT: em geral, a aplicação bilateral mostrou-se mais efetiva do que a unilateral. Contudo, mediante aumento da intensidade do estimulo elétrico, a ECT unilateral pode ganhar eficácia adicional, porém às custas de uma redução da sua melhor tolerabilidade sobre as funções cognitivas. A respeito dos efeitos adversos cognitivos, a revisão mostrou que a ECT está associada a déficits cognitivos transitórios, particularmente nos casos em que a aplicação da ECT é feita bilateralmente, ou unilateralmente no hemisfério dominante; o comprometimento cognitivo decorrente da ECT é autolimitado, perdurando por no máximo seis meses após o término do tratamento. Não foram identificadas evidências de que a ECT pudesse estar associada a uma taxa de mortalidade mais alta do que aquela atribuível aos procedimentos anestésicos. Os estudos com técnicas de neuroimagem não mostraram evidências que a ECT possa causar dano cerebral. Também não há evidências de que os benefícios e a segurança da ECT não se apliquem aos pacientes com idade avançada. Não há registro de complicações da ECT na gravidez; quando avaliados criticamente os riscos globais, chega-se a uma conclusão favorável ao uso da ECT, em detrimento os antidepressivos, para o tratamento dos transtornos mentais graves durante a gravidez.

Continuação da farmacologia depois da ECT

Alguns estudos mostraram altas taxas de recidiva dos sintomas depressivos, depois de atingida a remissão com ECT. Cinco estudos controlados foram favoráveis à manutenção do tratamento com antidepressivos ou lítio, após a conclusão do tratamento de fase aguda com ECT (Abou-Saleh e Coppen, 1988).

Esquizofrenia

A eficácia da ECT no tratamento da esquizofrenia foi avaliada por meio de revisão sistemática da literatura, incluindo-se os poucos estudos controlados disponíveis e os relatos disponíveis (Cochrane Review, Tharyan e Adams, 2002). Os autores concluíram que a ECT proporcionou benefícios à maior parte dos pacientes, com menores taxas de recidivas psicóticas e menor tempo de permanência hospitalar, em comparação com os pacientes que receberam placebo ou ECT simulada. A eficácia da ECT isoladamente mostrou-se inferior à dos medicamentos antipsicóticos, mas a associação da ECT aos antipsicóticos proporcionou benefícios superiores aos dos antipsicóticos sozinhos, não estando essa intervenção necessariamente associada a um maior comprometimento da memória. Dados limitados sugeriram um maior prejuízo da memória visual nos pacientes tratados com ECT, em comparação os que receberam com ECT simulada. Em pacientes de meia-idade e em idosos portadores de esquizofrenia refratária, incluindo formas catatônicas, a ECT mostrou-se mais segura e eficaz em curto prazo (Suzuki et al, 2003) (Tang e Unguari, 2003).
O estudo de revisão do NICE (2003), com dados de 25 estudos randomizados, indicou que a ECT é eficaz no tratamento de episódios agudos de certos tipos de esquizofrenia, reduzindo a ocorrência de recaídas. De qualquer forma, os resultados não são conclusivos e o desenho metodológico desses estudos não reflete a pratica clínica usual. A literatura médica carece de ensaios clínicos apropriados que compararam a ECT aos antipsicóticos, assim como de estudos com pacientes portadores de esquizofrenia refratária que não tenham feito uso de clozapina. Concluindo, admite-se que a ECT, isoladamente, não seja mais eficiente do que a medicação antipsicótica; a combinação da ECT com a farmacoterapia talvez seja mais eficiente que a farmacoterapia sozinha; entretanto, as evidências disponíveis não permitem essa generalização.

Mania

A revisão do NICE (2003), baseada em quatro ensaios randomizados, indicou que a ECT pode ser útil para o controle rápido dos sintomas da mania e da catatonia. Essa impressão é sustentada pelos resultados de estudos observacionais; contudo, não há um consenso quanto às estratégias terapêuticas mais apropriadas. No transtorno bipolar resistente ao tratamento farmacológico, também há evidências de benefícios da ECT em regime de manutenção (Vaidy et al, 2003).

Outras indicações

Em determinadas condições de difícil manejo, como a catatonia, a ECT pode ser considerada uma excelente opção terapêutica. A catatonia, caracterizada por graves anormalidades da atividade motora, pode ocorrer em decorrência de transtornos humor e na esquizofrenia. Admite-se que esta condição caracteriza uma emergência psiquiátrica. Embora algumas intervenções farmacológicas possam ser eficientes, como a administração de alguns benzodiapínicos e barbitúricos, a ECT deve ser considerada no plano do tratamento inicial (MacCall, 1992). A ECT também deve ser considerada como um tratamento capaz de salvar vidas em certos casos de síndrome neuroléptica maligna – uma grave condição clínica que também cursa com sintomas catatônicos – em especial quando os tratamentos medicamentosos usuais não foram capazes de reverter o quadro nos primeiros dias (Trollor e Sachdev, 1999). A ECT é também indicada na mania grave e prolongada, especialmente quando os medicamentos mostraram-se ineficientes (Mukherjee et al, 1994). É também ocasionalmente indicada para um subgrupo de pacientes esquizofrênicos com sintomas catatônicos, ou na presença de sintomas importantes de depressão comórbida, como recusa alimentar ou pensamentos suicidas (Fink, 1997). A ECT também é ocasionalmente empregada em algumas desordens não relacionadas ao humor, incluindo alcoolismo, anorexia nervosa, transtorno obsessivo-compulsivo, distúrbios da personalidade, demências, e na doença de Parkinson (McCall, 2000). Evidentemente, faltam evidências para se preconizar o uso generalizado da ECT nessas condições. A depender do julgamento clínico, definido caso a caso, a ECT pode tornar-se a melhor opção terapêutica em condições clínicas particulares, tais como nos episódios de doença mental grave durante a gravidez, em idosos com saúde frágil, ou ainda em determinados quadros resistentes ao tratamento em adultos jovens ou crianças. Nesses casos, em vista dos possíveis riscos, os clínicos devem adotar precauções adicionais.

Riscos

A taxa de mortalidade associada à ECT é basicamente similar àquela associada aos procedimentos envolvendo anestesia geral, ou seja, um em cada cem mil casos tratados (1:100.000). Os eventos que resultaram em morte ocorreram quase que exclusivamente em função de complicações cardíacas. Mediante a observância das diretrizes de boa prática clínica, publicadas nos guias de referência, a ocorrência de complicações cardíacas sérias – como infarto do miocárdio, fibrilação ventricular, aneurisma – tornou-se rara, mesmo em pacientes com doença cardíaca pré-existente (Zielinsky et al, 1993). Quanto aos distúrbios cognitivos decorrentes do uso agudo da ECT, tais como amnésia retrógrada, anterógrada e confusão mental, admite-se amplamente que são transitórios e reversíveis e, na maioria dos casos, não representam um problema clínico dominante. As disfunções cognitivas associadas à ECT, que muitas vezes são difíceis de se diferenciar dos sintomas cognitivos da depressão, constituem-se em um componente sintomatológico extremamente desgastante para certos pacientes, e que deve ser sempre acompanhado com cautela. Os estudos controlados de neuroimagem não apresentaram qualquer evidência de que a ECT possa causar danos cerebrais (NICE 2003). Entretanto, as disfunções cognitivas associadas ao tratamento contínuo ou de manutenção com ECT ainda devem ser estudadas apropriadamente.

Contra-indicações

Não há contra-indicações absolutas para a ECT, mas existem certas restrições, tais como a presença de tumores ou infartos cerebrais, histórico de infarto no miocárdio recente ou arritmias cardíacas, marcapasso cardíaco, aneurisma, deslocamento de retina, feocromacitoma e doenças pulmonares. Essas condições clínicas estão entre as situações potencialmente perigosas, onde o uso da ECT pode ser considerado de alto risco, requerendo precauções adicionais (Stevens et al, 1996).

Considerações práticas

Seis a oito aplicações são, em média, necessárias para o tratamento efetivo de um episódio depressivo, podendo-se chegar a 12 aplicações ou mais, se não houver melhora clínica satisfatória com as primeiras. Para a mania aguda, o número médio é de oito a 12 aplicações, chegando-se, eventualmente, a 16, nos casos mais difíceis. Para os pacientes que se beneficiam rapidamente da ECT, atingindo a remissão do quadro depressivo com 6-8 sessões, mas que apresentam recidivas na evolução imediata, recomenda-se o prosseguimento das aplicações por período maior (Abrams, 1992). A ECT administrada três vezes por semana (como é usada nos EUA) tem eficácia comparável ao tratamento com duas aplicações semanais, conforme prática européia.
Recomenda-se o emprego da atropina para prevenir a ocorrência de bradicardia vagotônica; contudo, essa prática não é adotada universalmente pelos clínicos. A succinilcolina é utilizada como relaxante muscular e, como hipotônicos, são utilizados o etomidato, o pentotal e o metohexital.
Em relação às características do estímulo elétrico, os melhores resultados são obtidos com eletrodos bilaterais (em comparação com a ECT unilateral), e com ondas de pulso breve. Quanto à dosagem das aplicações, recomenda-se a utilização de carga elétrica de intensidade equivalente a 2 ou 2½ vezes aquela necessária para se atingir o limiar convulsivo. Tais cargas são mais eficazes do que as de intensidades próximas ao limiar convulsivo. Entretanto, a dosagem elétrica ótima e o local de colocação do eletrodo devem ser definidas para cada paciente. A ECT de manutenção pode proporcionar benefícios adicionais, sustentando por mais tempo a resposta positiva ao tratamento inicial. Recomenda-se, por exemplo, uma aplicação a cada duas ou quatro semanas, durante os 4-6 meses subseqüentes ao tratamento agudo. Os estudos sistemáticos para avaliar estas formas de tratamento estão em andamento, com dados ainda inconclusivos. A avaliação clínica cuidadosa e prudente são amplamente recomendadas para a prescrição segura da ECT.

Administração de psicotrópicos durante a ECT

Há controvérsias a respeito da administração concomitante de antidepressivos e ECT. Na ausência de resposta antidepressiva adequada, a descontinuação dos medicamentos parece uma conduta razoável; por outro lado, a descontinuação abrupta dos antidepressivos, na vigência de um quadro sintomático, pode resultar na exacerbação dos sintomas (McCall, 2001). Revisões sobre as associações entre ECT e medicamentos psicotrópicos apontam para a ocorrência de sinergismo (ECT + neurolépticos em psicoses, mas não em depressão), antagonismo (ECT + benzodiazepínicos ou anticonvulsivantes), e toxicidade, com maior risco de reações adversas, tais como confusão mental (ECT + lítio) ou complicações cardiovasculares (ECT + inibidores da MAO). A administração concomitante de compostos como hormônios tiroideanos, pindolol ou cafeína, como uma estratégia de potencialização da ECT, ainda não alcançou um consenso geral.

Perspectivas

Após 70 anos desde a sua introdução, pode-se dizer que a terapia eletroconvulsiva representa uma intervenção eficiente para várias desordens psíquicas. Em relação a suas perspectivas futuras, a otimização dos procedimentos necessários para o tratamento, assim como a definição dos parâmetros ideais para a continuação e manutenção do tratamento devem ter prioridade nas pesquisas. No nível teórico, a elucidação dos mecanismos de ação da ECT é esperada com o avanço do nosso conhecimento, não apenas no tratamento da depressão, mas também da natureza biológica da doença.

Guias e recomendações

  • A ECT deve ser considerada somente depois de uma avaliação diagnóstica cuidadosa e uma extensiva avaliação do balanço entre os benefícios potenciais e os problemas envolvidos, tais como: o risco anestésico, a condição física do paciente, os eventos adversos anteriores (particularmente perda cognitiva), além das eventuais conseqüências do não tratamento.
  • A ECT somente deve ser administrada após a obtenção do consentimento informado dos pacientes que mantêm a capacidade de tomar tal decisão, ou de seus responsáveis, na situação contrária; nesses casos, devem ser adotados guias apropriados para pacientes incapacitados.
  • A ECT é fortemente recomendada como tratamento agudo inicial para os episódios depressivos graves, particularmente em pacientes com sintomas psicóticos (depressão psicótica), ou nos casos de depressão com risco de suicídio, de auto- ou heteroagressão, ou ainda nos casos de negligência pessoal e deterioração da saúde física. A ECT é eficaz no tratamento da depressão resistente aos antidepressivos e no controle rápido dos sintomas da catatonia e dos episódios de mania aguda grave e prolongada. Para minimizar o risco de recaída depressiva após a remissão obtida com a ECT na fase aguda, recomenda-se o uso continuado da farmacoterapia com antidepressivos por um período de 16-20 semanas após a remissão dos sintomas da doença. A ECT não é recomendada para o tratamento geral da esquizofrenia. As evidências são insuficientes em relação aos benefícios em longo prazo e dos riscos da manutenção da ECT nos transtornos depressivas.
  • Considerações cuidadosas devem ser tomadas acerca dos riscos do tratamento em pacientes grávidas, em idosos e em crianças.
  • A ECT é um tratamento seguro; os efeitos adversos cognitivos são freqüentes, porém transitórios, destacando-se o comprometimento da memória de curto e longo prazo. A ECT bilateral está associada a um maior comprometimento cognitivo, quando comparada à ECT unilateral aplicada no hemisfério dominante. A freqüência das aplicações de ECT, assim como outros parâmetros técnicos, têm um impacto pequeno na sua eficiência.

Texto traduzido por Bárbara Fonseca Nogueira, pós-graduanda do LIM27.

Fonte: Mohammed Abou-Saleh, Yiannis Papakostas, Iannis Zervas, and George Christodoulou, on behalf of the World Psychiatric Association

Referências

Arfwidsson L, Arn L, Beskow J et al. Chlorpromazine and the anti-depressive efficacy of electroconvulsive therapy. Acta Psychiatr Scand. 1973;49(5):580-7.
Fink M. The decision to use ECT: for whom? When? Mod Probl Pharmacopsychiatry. 1997;25:203-14.
Fink M. Convulsive therapy: the experience of 65 years. Prepared for the series “Lankmark developments in Affective illness during the 20th century” by invitation for the Journal of Affective Disorders, Hagop Akiskal (ed).
McCall WV. The Response to an Amobarbital Interview as a Predictor of Therapeutic Outcome in Patients with Catatonic Mutism. Convuls Ther. 1992;8(3):174-178.
McCall WV. Electroconvulsive therapy in the era of modern psychopharmacology. Int J Neuropsychopharmacol. 2001 Sep;4(3):315-24.
Mukherjee S, Sackeim HA, Schnur DB. Electroconvulsive therapy of acute manic episodes: a review of 50 years’ experience. Am J Psychiatry. 1994 Feb;151(2):169-76.
National Institute for Clinical Excellence. Guidance on the use of electroconvulsive therapy. 2003 :1-36.
Prudic J, Sackeim HA, Devanand DP. Medication resistance and clinical response to electroconvulsive therapy. Psychiatry Res. 1990 Mar;31(3):287-96.
Sackeim HA. The anticonvulsant hypothesis of the mechanisms of action of ECT: current status. J ECT. 1999 Mar;15(1):5-26.
Stevens A, Fisher A, Bartels M, et al. Electroconvulsive therapy: a review on indications, methods, risks, and medication. Eur Psychiatry 1996; 11:165-74.
The UK Review Group. Efficacy and safety of electroconvulsive therapy in depressive disorder: a systematic review and meta-analysis. Lancet. 2003; 361:799-808.
Trollor JN, Sachdev PS. Electroconvulsive treatment of neuroleptic malignant syndrome: a review and report of cases. Aust N Z J Psychiatry. 1999.
Zielinski RJ, Roose SP, Devanand DP, et al. Cardiovascular complications of ECT in depressed patients with cardiac disease. Am J Psychiatry. 1993 Jun;150(6):904-9.

* Kette Valente  

A epilepsia é um distúrbio que afeta o cérebro e se expressa por crises repetidas, caracterizadas por manifestações motoras, sensitivas, sensoriais, psíquicas ou neurovegetativas. Não se trata de uma doença específica ou uma síndrome única, mas de um conjunto de condições neurológicas que levam a descargas elétricas excessivas e anormais no cérebro. Essas descargas desencadeiam as crises epilépticas, que podem se manifestar de várias maneiras. 

Crises

As crises são classificadas como parciais simples, parciais complexas e generalizadas. As parciais simples não provocam alteração da consciência. Manifestam-se como eventos visuais, motores, autonômicos ou sensoriais e podem se confundir com outros fenômenos transitórios. Em alguns casos, evoluem para a forma parcial complexa.

As crises parciais complexas caracterizam-se por uma mudança de consciência, definida como incapacidade de responder normalmente a estímulos externos. Podem ocorrer em graus variáveis e associar-se a diversos eventos, como quedas abruptas e movimentos inconscientes e involuntários (automatismos). Ocasionalmente, são precedidas.

Quando a aura , que é a crise parcial simples, precede a parcial complexa, serve como um aviso ao paciente As parciais complexas, por sua vez, também podem para as secundariamente generalizadas.

          Nas crises generalizadas, as descargas neuronais são bilaterais. Envolvem, simultaneamente, amplas áreas de ambos os hemisférios cerebrais. A consciência é quase sempre comprometida, e as manifestações motoras afetam os dois lados do corpo. As crises podem ser convulsivas (com fenômenos motores) ou não. No primeiro caso, são classificadas como tônicas, quando o corpo fica rígido; clônicas, quando há contrações ritmadas seguidas de relaxamento em rápida sucessão; tônico-clônicas, se os dois sintomas estiverem presentes; e mioclônicas, caso haja contrações não ritmadas e erráticas de apenas em um ou alguns grupos de músculos definidos. Caso não haja fenômenos motores, como os anteriormente descritos, as crises são denominadas atônicas (perda do tônus muscular, sem rigidez do corpo) ou de ausência (perda do contato com o meio).

Há outros tipos de crise, menos comuns, que podem provocar quedas sem nenhum movimento ou contração, percepções visuais ou auditivas estranhas ou alterações transitórias da memória. Quando há perda de contato com o meio, o paciente geralmente não se recorda do que aconteceu durante a crise.

Causas

Entre as possíveis causas da epilepsia estão lesões cerebrais decorrentes de traumatismos na cabeça, tumores e distúrbios cerebrais degenerativos, infecções (meningite, por exemplo), abuso de bebidas alcoólicas ou de drogas e complicações durante o parto. A maior parte casos não tem uma origem clara, ou seja, não são determinados por uma lesão, mas sim por fatores genéticos.
A epilepsia é muito freqüente. A taxa de prevalência (número de ocorrências numa população) é bem maior que a incidência (casos novos numa população), já que a doença é crônica e tem baixo índice de mortalidade. A incidência anual varia de 30 a 50 novos casos em cada 100 mil indivíduos (0,03 a 0,05%). Já o índice de prevalência da epilepsia ativa, que inclui apenas casos com crises nos últimos cinco anos, está estimado em cinco a nove em cada mil pessoas (0,5 a 0,9%).

Diagnóstico

O diagnóstico é complexo. Estudos mostram que em mais de 50% dos casos, o tempo médio para identificação do problema é superior a seis meses. A investigação é feita com base no histórico clínico, mas a forma mais adequada de se definir uma crise é observar o episódio, seja pessoalmente ou por meio de registro em vídeo. Quando esses métodos não forem viáveis, recomenda-se interrogar uma testemunha ocular.

A compreensão e o tratamento da epilepsia foram revolucionados pela sofisticação de técnicas de neuroimagem, como a ressonância magnética, a espectroscopia, a tomografia computadorizada com emissão de fótons única (SPECT) e a tomografia com emissão de pósitron (PET). Esses exames têm como objetivo detectar anomalias visíveis e anormalidades no funcionamento cerebral, como alterações no metabolismo ou nas taxas de neurotransmissores. Além disso, há o eletroencefalograma (EEG), que continua a desempenhar um papel relevante no diagnóstico e por vezes, na orientação do tratamento da epilepsia.

Tratamento

Medicamentos antiepilépticos são capazes de abolir ou reduzir a freqüência das crises em 70% dos casos. No entanto, não modificam as conseqüências do dano neurológico coexistente e das dificuldades psicossociais. A escolha da medicação deve ser feita com base nas características individuais do paciente e sua aderência e tolerância ao tratamento.

Inicialmente, a intervenção cirúrgica era considerada apenas em casos de epilepsia incontrolável, mesmo com uso de fármacos, e de longa duração. Atualmente, considera-se o procedimento mais apropriado para jovens que têm a doença há pouco tempo, antes que as seqüelas psicossociais tenham se acumulado. É importante identificar a origem das crises e avaliar se a remoção cirúrgica do foco no cérebro não trará efeitos deletérios para o paciente.

Num estudo americano da década de 90, a cirurgia foi capaz de erradicar as crises em 59% dos casos; em 38%, elas diminuíram de freqüência; em apenas em 2% dos pacientes, a intervenção não trouxe benefícios. Todavia, outros relatos indicam que o percentual de pessoas com epilepsia não beneficiados pode ser de até 20%. É importante salientar que há uma enorme variação quanto aos resultados cirúrgicos, relacionada ao tipo de lesão do paciente, ou seja, a causa da epilepsia.

* Kette Valente é neurofisiologista e neuropediatra, doutora em Neurologia pela FMUSP e supervisora do Laboratório de Neurofisiologia Clínica do Instituto de Psiquiatria da FMUSP
Contato: kettevalente@msn.com
Para saber mais:
http://www.epilepsia.org.br
http://www.unifesp.br/dneuro/abe

* Wagner Gattaz

O termo esquizofrenia (esquizo = cisão, frenia = mente) foi introduzido em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler para definir uma doença psíquica caracterizada, basicamente, pela “cisão do pensamento, do afeto, da vontade e do sentimento subjetivo da personalidade”.

Os sintomas da esquizofrenia são classificados como produtivos e negativos. Os sintomas produtivos mais característicos são o delírio e as alucinações. Entende-se por delírio um juízo falso e irredutível da realidade, como por exemplo uma idéia de perseguição (delírio paranóide), no qual o paciente sente-se perseguido e ameaçado por outras pessoas, interpretando fatos da vida quotidiana como provas cabais de sua perseguição.

Alucinações são percepções sem estímulo externo, como ver ou ouvir coisas não presentes. Na esquizofrenia, as alucinações auditivas são as mais freqüentes: o paciente escuta vozes de pessoas ausentes, que comentam sobre seu comportamento ou lhe dão ordens imperativas, às quais ele não consegue resistir. O paciente passa a sentir-se influenciado por outros, perde o controle de sua própria vontade, sente-se controlado por telepatia, por hipnose, “como um robô”. Pode também interpretar delirantemente estímulos reais, como por exemplo, achar que uma determinada notícia na televisão ou no rádio refere-se à sua pessoa.

Os sintomas negativos caracterizam-se, principalmente, por uma diminuição da afetividade e por um empobrecimento do conteúdo do pensamento.

Prognóstico

Na população geral, o risco de um indivíduo adoecer de uma esquizofrenia durante a vida é de 1%. A prevalência da doença (freqüência em determinado ponto no tempo) é de 0,5%, e a incidência é de 30 novos adoecimentos em cada 100.000 habitantes por ano.

A idade média de início da esquizofrenia é de 20 a 25 anos nos homens e de 25 a 30 anos nas mulheres. Os sintomas iniciais são irritabilidade generalizada, diminuição dos interesses, morosidade, indecisão, isolamento social e descuido do aspecto pessoal.

De uma maneira geral, após o primeiro surto esquizofrênico, 1/3 dos pacientes nunca mais adoece, 1/3 volta a ter outros surtos com intervalos sadios e apenas 1/3 tem um curso desfavorável, desenvolvendo uma sintomatologia residual (comportamento excêntrico, diminuição do afeto e da vontade e perda de contato com o mundo circundante).

Diversos estudos mostram que 50% dos esquizofrênicos são hospitalizados apenas uma vez e que em 60% dos casos, com um tratamento adequado, consegue-se uma reintegração social e profissional satisfatória. Mesmo nos casos de curso desfavorável, a gravidade dos sintomas evolui dentro dos primeiros cinco anos da doença, não havendo piora após este intervalo. Com isto, sabe-se hoje que o prognóstico da esquizofrenia não é tão catastrófico como se acreditava há algumas décadas.

Causas

As causas da esquizofrenia ainda não foram totalmente elucidadas. Supomos tratar-se não de uma doença única, mas de uma síndrome com diferentes etiologias. O fator genético tem um papel importante: em gêmeos monozigóticos, quando um dos irmãos sofre da esquizofrenia, o outro terá um risco de 50% de adoecer, comparado com 1% na população geral. Entretanto, o fato de o risco de concordância para a doença nestes indivíduos geneticamente idênticos ser bem abaixo dos 100% prova que outros fatores, não genéticos, também influenciam o surgimento da esquizofrenia.
Várias pesquisas mostram que a esquizofrenia está associada a uma disfunção cerebral, principalmente do lobo frontal. Como essa disfunção já está presente em pacientes jovens, no primeiro surto da doença, supomos que ela não seja conseqüência da psicose em si ou de seu tratamento, mas sim de um distúrbio na maturação do cérebro durante a infância e a adolescência. Assim, fatores metabólicos ou ambientais que influenciem esse processo poderiam contribuir facilitando ou protegendo o desencadeamento da doença.

Perspectivas futuras

Sabe-se que a esquizofrenia é uma doença universal, ocorrendo em todos os povos e culturas com incidência semelhante. As mulheres parecem ter uma vantagem sobre os homens, visto que elas apresentam um adoecimento mais tardio e um curso mais favorável. Diversos experimentos sugerem que os hormônios sexuais femininos (estrógenos) poderiam contribuir para essa vantagem. O desenvolvimento recente de novos medicamentos antipsicóticos mais eficazes e com menos efeitos colaterais, adicionados à introdução de novas estratégias de reabilitação, causaram um grande impacto no tratamento e no prognóstico da esquizofrenia, permitindo um tempo de hospitalização mais curto e beneficiando uma maior reintegração social e profissional dos pacientes.

* Wagner Gattaz é professor titular do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

* Márcio Bernik e Fábio Corregiari 

O medo é um estado emocional universal, uma sensação que todos conhecem. Quem nunca sentiu algum desconforto na presença de uma cobra ou aranha, ou um frio na barriga quando o avião levanta vôo? Alguns medos são muito comuns na população e estão relacionados à nossa história (dos seres humanos) como mamíferos, ou seja, fazem parte de nossa evolução. Sua função é nos proteger da destruição, desde os tempos imemoriais. Alguns exemplos são o medo de trovões e tempestades, do escuro, de insetos, de animais, de pessoas estranhas e de doenças. O homem, como todos os animais sociais, protege seu nicho com a mesma energia com que zela por sua integridade física.

Como em outras situações biológicas, mesmo algo natural e que nos protege, neste caso o medo, em excesso causa sofrimento e nos prejudica, tornando-se uma fobia ou, como chamam os médicos, um transtorno fóbico-ansioso. Fobias são medos persistentes, excessivos e incontroláveis, direcionados a um objeto ou uma situação.

Características

Para que o medo seja considerado uma fobia, três características são necessárias. Em primeiro lugar, o contato com o objeto temido, ou mesmo a mera antecipação da possibilidade de contato, deve desencadear reações intensas de ansiedade. O coração dispara, e a pessoa , treme e respira de maneira acelerada. Costuma-se também sentir falta de ar, enjôo, ondas de frio ou calor, formigamentos nas mãos ou pés e dor ou aperto no peito. Ao mesmo tempo, o indivíduo pode ter um impulso de sair o mais rápido possível da situação ou sentir-se “congelado”, sem reação, ou ainda começar a chorar e a gritar.

O segundo aspecto típico da fobia é que a situação temida passa a ser evitada a todo custo ou o contato com o estímulo fóbico é suportado com sofrimento intenso. A pessoa evita qualquer situação em que haja a possibilidade de contato com o objeto temido, o que pode significar grandes limitações na sua vida.

A terceira característica – e esta é a diferença fundamental em relação aos “medos normais” – é que, nas fobias, o temor interfere significativamente na rotina, no trabalho e nos relacionamentos pessoais, causando sofrimento ou prejuízo funcional. Assim, diferentemente dos outros receios, elas são incapacitantes e não-adaptativas, ou seja, o indivíduo não consegue se adequar à situação.

As fobias classificam-se em agorafobia, fobia social e fobias específicas. A agorafobia é o medo de freqüentar locais públicos ou lugares em que a saída possa ser difícil ou constrangedora. Pacientes com esse tipo de fobia costumam se sentir mal se ficarem sozinhos em lojas cheias, túneis, pontes, elevadores, ônibus, metrô etc.

Agorafobia e fobia social

Na maioria das vezes, a agorafobia está associada ao transtorno de pânico. Nesse caso, a crise é geralmente causada pelo medo de sofrer ataques de pânico nessas situações, em que a fuga ou o socorro são dificultados.. Crises de pânico são episódios de medo intenso, acompanhados de sintomas físicos como coração acelerado, falta de ar, tremedeira e formigamentos.

Na fobia social, o indivíduo tem um medo excessivo de ser avaliado ou de ser o foco da atenção dos outros. A pessoa receia ser julgada negativamente ou que os outros pensem que ela é incompetente ou estranha. Entre as situações comumente temidas estão falar ou comer em público e escrever sob a observação de outros. Alguns pacientes receiam todo tipo de interação social.

É importante, entretanto, diferenciar a fobia social da timidez. No segundo caso, existe a ansiedade normal, que muitas vezes até contribui para um bom desempenho em situações sociais. Já na fobia social, essa ansiedade é excessiva e persistente. Eventos sociais são evitados ou suportados apenas com sofrimento intenso, com conseqüente prejuízo do desempenho funcional e no relacionamento com os outros. Muitas vezes, o medo e a ansiedade já começam dias antes do acontecimento, com a mera expectativa de entrar em contato com a situação temida.

Fobias específicas

As fobias específicas são o transtorno psiquiátrico mais comum na população, especialmente em crianças. Trata-se de um medo de determinado objeto ou situação específica. As mais comuns estão relacionadas a animais, tempestades, altura e doenças, mas elas também podem estar direcionadas a eventos como andar de avião ou em elevadores, ver sangue ou ferimentos, engasgar e vomitar, entre outras. Vale ressaltar que não é o tipo de medo que determina uma fobia, mas se ele chega ao ponto de interferir com a vida da pessoa ou causar sofrimento intenso.

Tratamento

Pouco mais de uma em cada dez pessoas desenvolve uma fobia em algum momento da vida, mas poucas procuram cuidados médicos. Reconhecer o problema é o primeiro passo para a melhora. As fobias precisam ser encaradas como qualquer outra doença, não há motivo para se ter vergonha. É muito comum que o indivíduo considere seu medo como excessivo ou irracional, e esta percepção muitas vezes retarda a busca por auxílio. Porém, essa demora só prolonga o sofrimento. Uma vez que a fobia esteja realmente estabelecida, dificilmente será controlada sem um tratamento adequado. Outra conseqüência negativa é que o paciente se desgasta tentando esconder seu problema, em vez de se esforçar para enfrentá-lo.

O tratamento da agorafobia e da fobia social freqüentemente exige o uso de medicações. As mais usadas são determinados tipos de antidepressivos. Entretanto, é importante que o paciente mude seu estilo de vida, o que significa adotar uma nova postura frente à doença. É necessário que ele deixe de evitar o objeto temido, passando progressivamente a enfrentá-lo.

A principal técnica que a psicoterapia cognitivo-comportamental propõe para o tratamento das fobias é uma forma organizada e progressiva de confronto com os medos, chamada de terapia de exposição. Nela, o paciente defronta-se com as situações temidas, começando por aquelas que geram menos medo e progredindo para as mais difíceis. Pode-se utilizar técnicas de relaxamento para ajudar a controlar a ansiedade, além de mudanças nos padrões de pensamento.

O fundamental é compreender que as fobias são problemas de saúde como quaisquer outros, para os quais existem tratamentos eficazes, capazes de fazer com que o paciente volte a ter uma vida sem limitações.

* Márcio Bernik é psiquiatra, doutor em Medicina pela FMUSP, coordenador do Ambulatório de Ansiedade da instituição (Ambam) e professor assistente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP; Fábio Corregiari é psiquiatra e doutorando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Contato: marcio.bernik@uol.com.br
Para saber mais:
http://www.amban.org.br

* Ênio Roberto de Andrade

Retardo mental é um estado de desenvolvimento incompleto ou inibido do intelecto, que envolve prejuízo de aptidões e faculdades que determinam a inteligência, como as funções cognitivas, lingüísticas, motoras e sociais. Sua característica essencial é o funcionamento intelectual inferior à média, acompanhado de limitações nas habilidades de comunicação, sociais e acadêmicas, nos cuidados consigo mesmo, na vida doméstica, no uso de recursos comunitários, na auto-suficiência, no trabalho, no lazer, na saúde e na segurança. A disfunção, que sempre se manifesta antes dos 18 anos, pode ocorrer de forma isolada ou acompanhar distúrbios mentais e físicos.

Prevalência

A taxa de prevalência na população varia de 1% a 3%, mas esse percentual é incerto, já que há uma grande variação entre os métodos usados nas pesquisas de estimativa. A ocorrência é mais comum nos países em desenvolvimento, onde é maior a incidência de lesões e anóxia (falta de oxigenação) no recém-nascido e de infecções cerebrais na primeira infância. O retardo mental também é mais freqüente no sexo masculino, na proporção de 1,5 caso para 1.

Alguns portadores de retardo mental são passivos e dependentes, enquanto outros podem ser agressivos e impulsivos. A falta de habilidades de comunicação pode predispor ao comportamento agressivo, para substituir a linguagem. A adaptação do paciente ao retardamento (funcionamento adaptativo) pode ser influenciada por vários fatores, entre eles educação, motivação, traços de personalidade, oportunidades sociais e vocacionais, transtornos mentais e condições médicas gerais. Os problemas de adaptação tendem a melhorar com esforços terapêuticos, enquanto que o QI cognitivo costuma permanecer estável.

A disfunção é classificada de acordo com o quociente de inteligência (QI) do portador, calculado por meio de testes de inteligência padronizados. Normalmente, quando a pontuação é de aproximadamente 70 ou menos, o desempenho é considerado abaixo da média. O diagnóstico de retardo mental é feito quando o indivíduo atinge uma faixa que varia de 70 a 75 para baixo, caso ele também apresente déficit significativo no comportamento de adaptação social. O distúrbio é considerado brando quando o QI varia de 50 a 69; moderado, de 35 a 49; grave, de 20 a 34; e profundo quando está abaixo de 20.

Grau leve

Cerca de 85% dos portadores de retardo mental apresentam a forma leve do distúrbio. Nesse caso, a idade mental varia de 9 a 11 anos. Esses indivíduos apresentam dificuldades de aprendizado e têm prejuízo mínimo nas áreas sensório-motoras. Freqüentemente não se distinguem das crianças sem retardo na primeira infância. No fim da adolescência, podem atingir habilidades acadêmicas equivalentes às da sexta série escolar.

Na fase adulta, esses pacientes conseguem integrar-se social e profissionalmente, adquirindo condições para um custeio mínimo das próprias despesas, mas podem precisar de supervisão, orientação e assistência, especialmente quando sob estresse social ou econômico. Com apoio adequado, podem viver de modo independente ou em contextos supervisionados.

Grau moderado

O retardo mental moderado afeta aproximadamente 10% dos portadores do distúrbio. Os adultos adquirem um desempenho equivalente ao de uma criança na faixa dos 6 aos 8 anos e precisam de assistência para viver e trabalhar em comunidade. Geralmente esses indivíduos apresentam atrasos acentuados do desenvolvimento na infância, mas podem adquirir habilidades de comunicação nesse período. Além disso, podem desenvolver capacidade adequada de comunicação e aprendizado escolar e algum grau de independência quanto aos cuidados pessoais.

Beneficiam-se de treinamento profissional e, com moderada supervisão, podem manter práticas sociais e ocupacionais. No entanto, dificilmente progredirão além do nível de segunda série. Durante a adolescência, a dificuldade no reconhecimento de convenções sociais pode interferir no relacionamento com seus pares.

Grau severo

Estima-se que essa forma de retardo mental atinja de 3% a 4% dos indivíduos afetados pela disfunção. A idade mental, nesse caso, equivale à de uma criança de 3 a 5 anos. Esses pacientes têm necessidade de assistência contínua. Durante os primeiros anos da infância, não desenvolvem a fala, que pode ser desenvolvida no período escolar, bem coo os cuidados elementares com a higiene.

O aprendizado escolar tem benefício limitado, limitando-se à familiaridade com o alfabeto e à contagem simples. No entanto, esses pacientes podem reconhecer visualmente algumas palavras mais importantes. Na idade adulta, são capazes de executar tarefas simples, sob supervisão. A maioria adapta-se bem à vida em comunidade, a menos que tenham uma deficiência associada que exija cuidados especializados.

Grau profundo

Esta é a forma mais rara do distúrbio, que afeta de 1% a 2% dos portadores. A idade mental desses indivíduos é inferior a 3 anos. Apresentam limitações graves quanto aos cuidados pessoais, continência, comunicação e mobilidade. A maioria dos pacientes nessa condição tem uma disfunção neurológica identificada como responsável pelo retardo mental.

Durante os primeiros anos da infância, apresentam prejuízos consideráveis no funcionamento sensório-motor. O desenvolvimento motor e as habilidades de higiene e comunicação podem melhorar com treinamento apropriado. Alguns desses indivíduos conseguem executar tarefas simples, em contextos abrigados e estritamente supervisionados.

Fatores predisponentes

Vários fatores podem levar ao retardo mental. Em 30% a 40% dos casos, é impossível identificar a origem do distúrbio; em outros 30%, as causas estão relacionadas a problemas no desenvolvimento do feto, como desnutrição materna, infecções da mãe (sífilis, rubéola e toxoplasmose, por exemplo), uso de drogas pela gestante e doenças genéticas; aproximadamente 10% das ocorrências estão associadas a incidentes no parto ou no primeiro mês de vida do bebê – oxigenação cerebral insuficiente, prematuridade e icterícia grave, entre outros; em cerca de 5% dos casos, o retardamento irá se manifestar do 30º dia de vida até o fim da adolescência, devido a desnutrição, desidratação grave, carência de estimulação global, infecções (meningoencefalites, sarampo etc), intoxicações por remédios, inseticidas ou produtos químicos, acidentes (trânsito, afogamento, choque elétrico, asfixia, quedas etc). A carência de iodo, que afeta o funcionamento da glândula tireóide, também é uma causa comum do retardo mental.

Fatores ambientais e transtornos mentais são responsáveis por aproximadamente 15-20% dos casos. Um exemplo são crianças criadas em um ambiente sem estímulos, o que prejudica o desenvolvimento mental.

Vários problemas genéticos causam retardo mental, sendo que a síndrome de Down é o mais freqüente. De cada 500 crianças que nascem, uma é portadora do distúrbio. A incidência aumenta com a gravidez em idade avançada.

Outras síndromes que provocam o retardamento são: do x frágil (segunda causa mais comum), de Angelman, de Prader-Willi, de Rubinstein-Taybi, de Kallman, de Rett, de Willians, de Turne (ausência do cromossomo do pai), de Smith-Magenis, de Lesch-Nyhan, de Klinelfelter (presença de um cromossomo sexual a mais), velocardiofacial e cri du chat, a esclerose tuberosa e a distrofia muscular de Duchene.

Tratamento

Normalmente, os portadores de retardo mental são levados ao psiquiatra quando apresentam irritabilidade, comportamento social inadequado, hiperatividade ou agressividade. O tratamento medicamentoso visa a controlar os sintomas e o surgimento de outras doenças associadas ao retardamento. Em certos casos, é recomendável a associação à psicoterapia individual, terapia familiar ou social.

As perspectivas futuras com relação ao retardo mental dizem respeito à identificação do mecanismo genético que orienta o desenvolvimento do sistema neurobiológico. A compreensão desse funcionamento permitirá o melhor entendimento sobre a origem das disfunções cognitivas.

* Ênio Roberto de Andrade é diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Contato: enio.r.andrade@uol.com.br
Para saber mais:
http://www.psiqweb.med.br

* Cintia Fridman

A síndrome de Angelman foi descrita em 1965 por Harry Angelman, que verificou a existência do distúrbio em crianças com retardamento mental grave e crises de riso. Caracteriza-se clinicamente por baixo tônus muscular (hipotonia), atraso no desenvolvimento neuropsicomotor (demora para começar a sentar, engatinhar, caminhar e falar), retardamento mental grave, ausência de fala e convulsões.

As crises de espasmos iniciam-se por volta de 1 ano e meio. Costumam ser acompanhadas de febres altas, que podem ser controladas e desaparecer com o tempo. Outras características importantes são incapacidade de coordenar movimentos musculares voluntários (ataxia), acessos de risos (provocados ou não) e secreção excessiva de saliva (sialorréia).

Fisicamente, os portadores da síndrome têm boca grande, queixo proeminente, dentes espaçados e língua protusa. A forma de caminhar é típica: os passos são largos e o andar ocorre aos trancos (espasmódicos), com os braços flexionados e as mãos caídas. A criança começa a andar somente por volta dos 3 ou 4 anos de idade. Algumas podem apresentar distúrbios de sono, hiperatividade, comportamento agressivo e cor da pele mais clara que a dos pais (hipopigmentação).

Sinais comportamentais

A observação do comportamento da criança é de grande ajuda no diagnóstico das mais novas, em que as características faciais ainda são pouco reveladoras. Os portadores têm aspecto sorridente e riem com freqüência, mesmo quando o estímulo é mínimo. Ao gargalhar, costumam abanar as mãos, o que também ocorre em momentos de excitação.

Além disso, crianças com a síndrome gostam de brincar com a água e apreciam barulho e imagens refletidas em espelhos. Algumas conseguem realizar sozinhas tarefas como comer, ir ao banheiro durante o dia, vestir-se com ajuda e executar tarefas domésticas simples. Outras conseguem pronunciar poucas palavras (geralmente três ou quatro), mas a maioria aprende a comunicar-se apenas por gestos ou sinais.

Incidência

A incidência da síndrome de Angelman é estimada em um caso a cada 20 mil indivíduos. Entretanto, há relatos de pacientes que apresentam quadro clínico moderado, com características comportamentais mais sutis. Como esses portadores possivelmente não são diagnosticados, o índice de ocorrência do distúrbio pode estar subestimado.

Causas

Da mesma forma que a síndrome de Prader-Willi, a síndrome de Angelman é decorrente de uma falha genética no cromossomo 15. Neste caso, porém, o problema é causado pela ausência de uma região de origem materna, denominada SPW/AS, nesse cromossomo. Como resultado, há perda da expressão de determinada informação genética que é transmitida pela mãe, e não pelo pai, como ocorre na síndrome de Prader-Willi.

A confirmação do diagnóstico da síndrome de Angelman é feita por teste clínico e genético. Este último baseia-se em estudos de DNA, que identificam a ausência da contribuição materna na região SPW/SA do cromossomo 15. As técnicas usadas permitem detectar 85% dos casos. O índice de acerto não é maior porque alguns pacientes com características da síndrome não apresentam os mecanismos genéticos, conhecidos até agora, que determinam o distúrbio. Nesses casos, o diagnóstico é essencialmente clínico.

Diagnóstico

Deve-se investigar a presença da síndrome de Angelman em crianças com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor de causa desconhecida. Além disso, a combinação de características faciais, grave retardamento mental, ataxia, convulsão e o semblante feliz sugere o diagnóstico da doença, que é confirmado por estudos moleculares.

Em geral, a síndrome passa desapercebida no primeiro ano de vida e é reconhecida por volta dos 3 ou 4 anos. Alguns sintomas, como convulsões, crises de risadas, boca grande, queixo proeminente e andar descoordenado tornam-se mais evidentes após os 2 anos. Outros sinais, como face assimétrica e escoliose, costumam aparecer somente na puberdade. O estudo do eletroencefalograma (EEG) pode ser útil no diagnóstico, mas algumas evidências da doença dependem da idade do portador e podem não estar presentes em crianças mais velhas.

Os progenitores dos pacientes apresentam risco de recorrência que pode variar de 1% a 50%, dependendo do mecanismo genético envolvido na origem do problema. Há relatos de portadores na mesma família que não apresentam anomalias cromossômicas. Além disso, o diagnóstico não pode ser confirmado geneticamente em cerca de 15% dos pacientes. Por isso, é sempre necessária uma avaliação clínica precisa, baseada no histórico e em características físicas (fenotípicas) e comportamentais do indivíduo.

Síndrome de Rett

Os sintomas da síndrome de Angelman muitas vezes se confundem com os da síndrome de Rett, uma doença neurológica que causa retardamento mental grave em meninas. Por isso, antes do diagnóstico conclusivo da síndrome de Angelman, é preciso diferenciá-la desta da outra enfermidade, e até mesmo de outros distúrbios com características semelhantes.

Pacientes com síndrome de Rett têm desenvolvimento normal até 6 ou 18 meses de idade. Depois, entram em um período de regressão e perda das habilidades motoras e mentais. Os sintomas incluem perda gradual da fala e do uso intencional das mãos, crescimento reduzido da cabeça (microcefalia), convulsões, ataxia, desligamento da realidade exterior (autismo), aumentos intermitentes da quantidade de ar nos pulmões (hiperventilação) e movimentação repetitiva e anormal das mãos. Após a regressão inicial, a doença estabiliza-se e, geralmente, as crianças sobrevivem até a idade adulta.

A principal característica que distingue os dois distúrbios é a regressão com perda de habilidades adquiridas em meninas com síndrome de Rett. Crianças com síndrome de Angelman nunca chegam a adquirir certas funções ou começam a executá-las tardiamente.

* Cintia Fridman é docente no Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho na FMUSP e colaboradora no Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (LIM-27)
Contato: cintiafridman@yahoo.com.br

* Cintia Fridman

A síndrome de Prader-Willi é uma doença genética que afeta o desenvolvimento da criança, resultando em obesidade, estatura reduzida e baixo tônus muscular (hipotonia). Os portadores apresentam dificuldades de aprendizagem e problemas comportamentais, entre eles depressão, episódios de violência, mudanças repentinas de humor, impulsividade, agitação e obsessões por determinadas idéias ou atividades. Descrito pela primeira vez em 1956, o distúrbio é considerado hoje a principal causa de obesidade com origem genética.

Características clínicas

Durante o período neonatal e a primeira infância, a enfermidade caracteriza-se por diferentes graus de hipotonia. Bebês com a síndrome de Prader-Willi apresentam baixo índice de vitalidade (freqüência cardíaca baixa, respiração fraca ou irregular, movimentos lentos etc), dificuldade de sugar, baixa temperatura corporal (hipotermia) e choro fraco. Além disso, são pouco ativos e dormem a maior parte do tempo. Uma vez diagnosticada a doença, a criança pode ser alimentada por meio de sonda gástrica durante vários meses, até que seu controle muscular melhore.

O enfraquecimento do tônus muscular, entretanto, não é progressivo e começa a estabilizar-se por volta dos 8 aos 11 meses de idade. A criança fica mais alerta, seu apetite aumenta e ela ganha peso. A obesidade surge, aproximadamente, entre 1 e 6 anos de idade, o que pode representar um marco para o início da segunda fase da doença.

Nesta etapa, o portador da síndrome de Prader-Willi apresenta atraso no desenvolvimento neuromotor (demora para começar a sentar, engatinhar e caminhar), dificuldade na articulação de palavras, problemas de aprendizagem, constante sensação de fome e interesse por comida (hiperfagia), obesidade, inatividade e diminuição da sensibilidade à dor. As características físicas são baixa estatura, mãos e pés pequenos, pele mais clara que os pais, boca pequena com o lábio superior fino e inclinado para baixo nos cantos da boca, fronte estreita, olhos amendoados e estrabismo.

Algumas crianças de 3 a 5 anos podem desenvolver problemas de personalidade, como depressão, violência, alterações repentinas de humor, pouca interação com outras pessoas, imaturidade, comportamento social impróprio, irritabilidade, teimosia, hábito de mentir, desobediência ou falta de cooperação, impulsividade, agitação, choro sem razão, rejeição à mudanças na rotina e obsessão por alguma idéia ou atividade. Por outro lado, costumam apresentam grande habilidade para montar quebra-cabeças.

Incidência e causas

A incidência da síndrome de Prader-Willi é de aproximadamente um caso em cada 10 mil a 30 mil nascimentos. A doença é geralmente esporádica: poucos são os casos relatados de ocorrência entre membros da mesma família. Entretanto, é importante investigar o mecanismo genético que originou a síndrome, já que o risco de recorrência do distúrbio varia de 1% a 50%.

A doença tem origem genética. Da mesma forma que na síndrome de Angelman, os portadores apresentam ausência de determinada região do cromossomo 15. Na síndrome de Prader-Willi, porém, a parte ausente é de origem paterna, e não materna, como ocorre na de Angelman. Como resultado, o indivíduo não apresenta a expressão de uma informação genética transmitida pelo pai.

O diagnóstico é feito por meio do teste genético, capaz de identificar a ausência da contribuição paterna no cromossomo 15. As técnicas atuais permitem detectar 99% dos casos. Estudos mostram que essa avaliação é bastante eficaz para o diagnóstico precoce em recém-nascidos com hipotonia. Além disso, o exame é útil para diferenciar a síndrome de outras doenças em que crianças e adolescentes apresentam retardo mental e obesidade.

Diagnóstico precoce

É importante detectar o distúrbio precocemente, para que os pais tenham a oportunidade de oferecer às crianças dietas apropriadas e estimular nelas hábitos adequados de alimentação e atividade física. Dessa forma, é possível evitar problemas relacionados à obesidade, como diabetes, hipertensão e dificuldades respiratórias, que são as principais causas de morte dos portadores da síndrome na adolescência. Além disso, o diagnóstico precoce permite que a criança tenha acesso antecipado à ajuda de profissionais, como pedagogos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos.

Na adolescência, o cuidado com a alimentação pode fugir ao controle da família. Os pacientes costumam usar sua perspicácia para conseguir comida e tornam-se agressivos quando o alimento lhes é negado. O portador e seus familiares precisam de suporte psicológico, que deve ser iniciado na infância e continuar até a vida adulta do indivíduo. Nesta fase, o maior problema passa a ser o controle de peso e de comportamento do paciente, que pode apresentar períodos de irritabilidade e até surtos psicóticos.

Geralmente, a identificação da síndrome ocorre somente após a manifestação da obesidade. Para que possa ser oferecida uma melhor qualidade de vida aos portadores, sugere-se que o teste genético seja requisitado em recém-nascidos e lactentes com hipotonia e dificuldade de sucção e algumas das características referentes à aparência física (fenotípicas) do distúrbio. Dessa maneira, pode-se conseguir o diagnóstico precoce e evitar métodos de investigação clínica mais invasivos e de difícil interpretação, como a eletroneuromiografia e a biópsia muscular.

Além disso, muitos efeitos indesejáveis dos sintomas da doença podem ser amenizados com o diagnóstico correto, que proporciona a chance de intervenções terapêuticas e educacionais. O conhecimento da família sobre a síndrome permite a busca de um espaço inclusivo, seguro, assistido e estimulador para o paciente se desenvolver e de um acompanhamento de saúde e educação adequados.

* Cintia Fridman é docente no Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho na FMUSP e colaboradora no Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (LIM-27).
Contato: cintiafridman@yahoo.com.br

* Dra. Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro

Suicídio é a trágica e intempestiva perda de vida humana. O mais devastador e perplexo de tudo é que é representado por um ato da vontade.

A palavra suicídio deriva do latim e significa: sui = si mesmo e caedes = ação de matar, isto é, a morte de si mesmo. Os atos suicidas são definidos como comportamentos potencialmente autolesivos com evidência de que a pessoa pretendia se matar. O resultado de um ato suicida pode variar desde a não ocorrência de lesão até a morte. São subdivididos em tentativas de suicídio e suicídio (completo ou exitoso). As tentativas de suicídio são classificadas como sendo com ou sem lesão.

O grau de intenção suicida de uma pessoa deve ser considerado como um ponto num continuum: de um lado está a certeza absoluta de matar-se e no outro extremo está a intenção de seguir vivendo. A condição sine qua non do suicídio é uma morte em que o sujeito é, ao mesmo tempo, o agente passivo e ativo, a vítima -o desejo de morrer e o desejo de ser morto – e o assassino – o desejo de matar. Na intencionalidade do comportamento suicida deve-se levar em conta: 1. a possibilidade ou impossibilidade de reversão do método empregado para morrer; 2. as providências que tornam possíveis a ação de terceiros; 3. quando esta intervenção ocorre e pode-se inferir que a intencionalidade seja mínima. Avaliar o grau de gravidade de uma tentativa de suicídio pode ser uma tarefa bastante difícil, pois são atos intencionais de auto-agressão que não resultam em morte, desde atos discretos e velados de ameaça a própria vida, alguns deles talvez com o objetivo de ganhar atenção, até situações graves que necessitam de atendimento médico hospitalar. A noção de que a ideação suicida varia dentro de um continuum, ocorrendo desde idéias não especificadas como “a vida não vale a pena” ou “eu queria estar morto”, para idéias específicas que se acompanham de intenção de morrer e/ou de um plano de suicídio.

A intenção suicida genuína é freqüentemente ambivalente em relação à morte e a firmeza do propósito pode ser variável. Esses pacientes têm humor disfórico, com sentimento de inutilidade, falta de esperança, perda da auto-estima e desejo de morrer. Há o sentimento de dos três “is”: intolerável (não suportar), inescapável (sem saída) e interminável (sem fim). Suicidas potenciais podem se arrepender e procurar ajuda após o ato. O alívio, após a tentativa, faz a pessoa refletir sobre seu ato.

Identificando intenção suicida

A comunicação prévia de que iria ou vai se matar, mensagem ou carta de adeus, planejamento detalhado, precauções para que o ato não fosse descoberto, ausência de pessoas por perto que pudessem socorrer, não procurou ajuda logo após a tentativa de suicídio, método violento ou uso de drogas mais perigosas, crenças de que o ato seria irreversível e letal, providência finais (conta bancária, providenciar a escritura de imóveis, seguro de vida) antes do ato, afirmação clara de que queria morrer, arrependimento por ter sobrevivido.

Entre os jovens deve-se estar alerta para o abuso ou dependência de substâncias psicoativas associado à depressão, incluem: tentativa suicida prévia, idéias suicidas, sentimentos de desesperança e problemas de abuso de substâncias, luto, acesso fácil ao método do suicídio e falta de apoio social. Outras situações estressantes habituais na adolescência são as mudanças físicas e psíquicas, busca da identidade e autonomia, e relacionamentos com grupos que favoreçam comportamentos destrutivos: atividade sexual precoce e sem proteção, porte de armas, delinqüências, lutas corporais, tabagismo excessivo e intoxicação por álcool e pobre gerenciamento da rotina dos filhos por parte dos pais.

Indicativos de repetição de tentativa de suicídio

História prévia de hospitalização por auto-agressões, tratamento psiquiátrico anterior, internação psiquiátrica prévia, transtorno e personalidade anti-social, alcoolismo / drogadição e não estar vivendo com a família.

Fator precipitante

A intoxicação por álcool é um potente fator no momento da morte. Três características marcam o ato suicida praticado por alcoólatras deprimidos: a impulsividade da tentativa, aumento do consumo de álcool na véspera e intoxicação alcoólica precedendo a tentativa. A presença de uma arma de fogo em casa é o mais poderoso fator, principalmente em adolescentes.

Fatores de risco

Conhecer os fatores de risco auxilia a dissipar o mito de que o suicídio seja um ato aleatório ou que resulte unicamente de sofrimento. O risco de suicídio aumenta com a idade, atinge seu maior nível após os 65 anos. É duas a três vezes mais freqüente em homens que em mulheres. Os divorciados e viúvos são os mais atingidos (quatro vezes mais que os casados), sendo seguidos pelos solteiros (duas vezes mais), os casados são os menos afetados. A proteção oferecida pelo casamento é bem mais importante para os homens que para as mulheres. A gravidez e a maternidade são fatores protetores para as mulheres, embora uma gravidez não planejada, sobretudo na adolescência pode precipitar tentativa de suicídio. Há uma correlação positiva entre desemprego e suicídio, especialmente entre os homens. Estudos de história familiar mostram aumento de suicídio em famílias com vítimas de suicídio. Níveis cerebrais reduzidos de serotonina ou de seu metabólito, o ácido 5-hidroxi-indol-acético (5-HIAA), têm sido encontrados em vítimas de suicídio ou de graves tentativas. A história prévia de tentativa de suicídio é considerada um forte preditor de suicídio posterior, aumentando em cerca de 40 vezes nestes indivíduos em comparação com a população geral.

Abordagem das tentativas de suicídio

Consiste nos cuidados iniciais à saúde, se emergência clínica e/ou cirúrgica, assegurar o bem-estar físico, evitando as complicações médicas decorrentes do ato. O médico do pronto-socorro deverá decidir se a vítima deve ser levada para a unidade de terapia intensiva (UTI), para o Centro cirúrgico ou ortopédico, setor de endoscopia ou clínica de queimados, ou as condutas nos casos de envenenamento. Poderá ser encaminhado ao ambulatório de saúde mental ou se deve ser transferido para uma unidade psiquiátrica pela presença de risco ou de transtorno psiquiátrico que necessite de tratamento especializado.

Após o exame clínico usual, devem ser investigados os recursos do paciente: avaliar a capacidade de elaboração, de resolução de problemas, os recursos materiais (moradia e alimentação), o suporte familiar (família próxima ou confiável), social, profissional e de instituições, e os eventos precipitantes: levantar todas as circunstâncias e motivações que deflagraram o ato. É freqüente a presença de vários fatores estressantes, ou problemas psicossociais crônicos, problemas policiais ou pendência judicial, perda de ente querido, luto, doença física crônica, desemprego, eventos de vida adversos na presença de depressão. Os conflitos interpessoais, como brigas, desentendimentos, separações, podem precipitar 50% das tentativas.

A hospitalização é indicada de acordo com o grau de risco potencial de suicídio, principalmente se o paciente não colabora, apresenta um transtorno mental grave que prejudica a sua crítica frente à situação e não possui uma rede de suporte familiar. Algumas vezes, uma hospitalização precipitada pode ser prejudicial ao paciente frente a uma avaliação errônea do risco de suicídio. Após a escolha do ambiente terapêutico (hospital, ambulatório, domicílio). A medicação adequada deve ser indicada e manuseada por profissionais habilitados com a dosagem, efeitos colaterais e interações medicamentosas, levando-se em conta as condições físicas do paciente, além da idade e peso. Grande vigilância faz-se necessária no início do tratamento com antidepressivos, pois eles demoram dias a semanas para alcançarem efeito terapêutico. O tratamento com eletroconvulsoterapia (ECT) deve ser cogitado naqueles casos graves, com forte determinação para o suicídio. Esse tipo de terapêutica não deve ser visto com preconceito, pois é um tratamento eficaz e seguro para diversos quadros psiquiátricos com risco de suicídio. O seu benefício ao paciente está relacionado diretamente à sua indicação oportuna e adequada, como na cardioversão. Em outros mais leves, encaminhamento para psicoterapia. A família e o paciente devem ser exaustivamente orientados e esclarecidos quanto à proposta terapêutica. Uma internação domiciliar pode ser uma alternativa razoável. Isso é possível quando há baixo risco de suicídio, supervisão disponível e suporte adequado em casa. Os familiares e amigos devem revezar-se na tarefa de vigilância. Sentimentos e comportamentos como choque, confusão, negação, inquietação, regressão, desesperança e estado de alerta são comuns nos familiares.

A vigilância deve ser providenciada com o intuito de garantir a segurança do paciente: 1. retirar da casa medicamentos potencialmente letais, armas brancas e armas de fogo; 2. manter abstinência de álcool e drogas que possuem efeitos desinibitórios; 3. evitar locais elevados e sem proteção, pelo risco de se jogar; 4. evitar que o paciente fique sozinho, ou trancado em um recinto. Pode ser realizado um contrato de “não-suicídio” (verbal ou escrito), que consiste em o paciente concordar em não realizar ato auto-agressão e relatar a um familiar se tiver desejos suicidas.

Prevenção

Dirigem-se à melhora da assistência clínica ao indivíduo que já luta contra idéias suicidas ou ao indivíduo que precise de atendimento médico por tentativa de suicídio; e abordagens que possam reduzir a probabilidade do suicídio antes que indivíduos vulneráveis alcancem o ponto de perigo. “Prevenir é melhor que remediar”.

Fonte: Dra. Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro
Doutora em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Supervisora de Médicos residentes em Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP; Coordenadora da Enfermaria de pacientes psicóticos do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP.

* Ana Gabriela Hounie e Euripedes Constantino Miguel

Tiques são movimentos involuntários, rápidos, repetitivos e estereotipados, que surgem de maneira súbita e não apresentam ritmo determinado. Alguns exemplos são piscadas de olhos e movimentos com os ombros, mas as manifestações também podem se dar na forma de sons emitidos pelo paciente (vocalizações). Podem ser contínuos ou surgir repentinamente, como acessos.

A intensidade dos tiques é variável. Alguns são quase imperceptíveis, mas outros são bastante complexos, como saltos ou fortes latidos. Há também casos em que são “camuflados” em atitudes corriqueiras, como afastar o cabelo do rosto ou ajeitar a roupa. Neste caso, só são reconhecidos pelo seu caráter repetitivo.

O paciente consegue evitar os tiques, porém com esforço e tensão emocional. Algumas vezes, as manifestações são precedidas por uma sensação desconfortável, chamada premonitória e, freqüentemente, seguidas por um sentimento de alívio. Costumam desaparecer durante o sono e diminuir com a ingestão de bebidas alcoólicas ou durante atividades que exijam concentração. Por outro lado, fatores como estresse, fadiga, ansiedade e excitação aumentam a intensidade dos movimentos característicos.

Tiques complexos

Os tiques podem ser simples ou complexos. No primeiro caso, estão as manifestações mais diretas, como piscar os olhos, fazer caretas, torcer o nariz ou a boca, trincar os dentes, levantar os ombros, mover os dedos das mãos e sacudir a cabeça ou o pescoço. Entre as vocalizações dessa categoria estão “coçar” a garganta, estalar a língua, gritar, assobiar, roncar e imitar sons de animais, como grunhidos, uivos, zumbidos e latidos.

Já os tiques complexos podem organizar-se e serem ritualizados. Assemelham-se às compulsões, manifestações precedidas de fenômenos cognitivos ou obsessões (idéias, pensamentos e imagens), normalmente acompanhadas de intensa ansiedade, palpitações, tremores e sudorese. A diferença é que os tiques são precedidos por uma sensação de obrigatoriedade, de ter que fazer algo, que age como uma pressão crescente que precisa ser descarregada. Além disso, portadores de tiques relatam sensações táteis ou musculares que antecipam os comportamentos repetitivos (sensações premonitórias), o que não ocorre com as compulsões.

Síndrome de Tourette

Portadores de tiques costumam apresentar mais de um tipo de manifestação. Quando elas são múltiplas e envolvem tanto tiques motores como vocais, não necessariamente ao mesmo tempo, caracterizam a síndrome de Tourette.

O distúrbio surge por volta dos 7 anos, mas esse evento pode variar dos 2 aos 15 anos. No início, ocorrem tiques motores simples, como piscadelas dos olhos. Aos 11 anos, em média, a criança apresenta vocalizações, como pigarro, fungadelas, tosse e exclamações coloquiais, entre outras. Essa ordem, entretanto, pode ser invertida.

O tique também pode se manifestar como uma emissão involuntária de palavras ou gestos obscenos (coprolalia e copropraxia, respectivamente). A coprolalia ocorre em menos de um terço dos casos e talvez sofra alguma influência cultural, já que é mais freqüente em determinados países. Na Dinamarca, por exemplo, é seis vezes mais comum que no Japão. A copropraxia, por sua vez, afeta de 1% a 21% dos pacientes. Em menos da metade dos casos, também pode ocorrer repetição de palavras ouvidas (ecolalia), de gestos observados (ecopraxia) ou da própria fala (palilalia).

Estimativas

Calcula-se que um terço dos pacientes apresente remissão completa no fim da adolescência; outro terço, melhora dos tiques. O restante provavelmente continuará com o problema inalterado durante a vida adulta. Ainda assim, há relatos de desaparecimento dos tiques de forma espontânea em 3% a 5% dos casos.

Depois que a síndrome de Tourette se instala, os sintomas variam de intensidade, principalmente na adolescência. Alguns distúrbios de comportamento costumam aparecer junto com a doença, como hiperatividade, automutilação, problemas de conduta e de aprendizado, além do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Estudos sugerem que mais de 40% dos portadores da síndrome de Tourette também apresentam TOC e cerca de 90%, sintomas obsessivos.

Há casos em que os transtornos associados são mais preocupantes que os tiques. A síndrome de Tourette raramente é grave e nem sempre exige tratamento com medicações. Muitas pessoas passam a vida com tiques sem maiores problemas.

Causas

Cerca de 1% da população mundial tem síndrome de Tourette, desde as formas mais brandas e não-diagnosticadas até as mais graves. Os tiques costumam afetar até 20% das crianças, mas em geral desaparecem espontaneamente, em menos de três meses. Caso contrário, há suspeita de tiques crônicos ou síndrome de Tourette.
A causa da doença é desconhecida, mas sabe-se que há influência de fatores genéticos e neurobiológicos. Estudos com famílias de portadores indicam que há uma transmissão genética da predisposição à síndrome. Entre gêmeos idênticos (monozigóticos), quando um irmão é afetado, em mais de 50% dos casos o outro também possui a doença. Se não forem idênticos, esse percentual é de 10%. Quando todos os tipos de tique são incluídos, e não apenas a síndrome de Tourette, a taxa de concordância entre gêmeos monozigóticos aumenta para 77%.

Investigações sugerem que também há uma relação entre problemas na gravidez e a ocorrência da doença no filho. Algumas mostram uma incidência 1,5 vez maior de complicações durante a gestação de portadores de tiques do que na de indivíduos saudáveis. Entretanto, nem todas as pesquisas conseguiram demostrar essa correspondência.

Os fatores psicológicos também podem ter grande influência no desenvolvimento do transtorno. Os tiques pioram, por exemplo, na presença de eventos estressantes, não necessariamente desagradáveis. Já se verificou que há uma associação entre o conteúdo dos tiques, seu início e os eventos marcantes na vida das crianças portadoras da doença.

Pequisas

Estudos com ressonância magnética cerebral mostraram que há alterações em algumas estruturas cerebrais, conhecidas como gânglios da base e corpo caloso, de portadores da síndrome. Tomografias de maior precisão, que funcionam à base da emissão de partículas subatômicas (pósitrons e fótons), revelaram que esses pacientes, em geral, apresentam menor atividade em algumas regiões do cérebro, chamadas córtex frontal e temporal, cíngulo, estriado e tálamo.

Inúmeras pesquisas sugerem que a síndrome de Tourette seja influenciada por um substrato neuroquímico. A principal teoria dessa linha é que, nos portadores do transtorno, há uma atividade maior da dopamina, uma substância que auxilia na transmissão dos impulsos nervosos de um neurônio para outro. Medicamentos que inibem a ação da dopamina reduzem a intensidade e freqüência dos tiques, enquanto drogas que estimulam sua atividade causam exacerbação das manifestações.

A incidência da síndrome é maior no sexo masculino. Por isso, acredita-se que os tiques estejam relacionados a influência dos hormônios masculinos sobre o sistema nervoso central. Há relatos exacerbação dos sintomas associada ao uso exagerado de esteróides androgênicos, anabolizantes que aumentam a massa muscular. Em outros casos, os tiques intensificam-se no período pré-menstrual, o que demonstra uma relação do problema com o equilíbrio hormonal.

Alguns pesquisadores também sugerem que há uma relação entre os tiques e outros transtornos e anticorpos que atacam o cérebro (antineurais), produzidos pelo organismo para combater infecções causadas por estreptococos. Essa teoria baseia-se no fato de que algumas pessoas começam a apresentar tiques ou pioram seu estado depois de sofrerem infecções de garganta. Estudos realizados no Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (Protoc), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, mostraram que a febre reumática, uma complicação posterior à infecção de garganta que está associada a alterações imunológicas, pode aumentar a chance de se ter síndrome de Tourette tanto nos pacientes como em seus familiares.

Tratamento

O tratamento da síndrome de Tourette envolve a terapia psicossocial e a farmacológica. Antes de ser iniciado, deve-se fazer uma avaliação dos tiques, no que diz respeito a localização, freqüência, intensidade, complexidade e interferência na vida cotidiana. Também devem ser analisados aspectos como ambiente escolar e familiar, relacionamentos e distúrbios associados ao problema.

Até o momento, não há cura para os tiques e a síndrome de Tourette, mas medicamentos podem ajudar a aliviar os sintomas. Estima-se que 60% dos portadores precise desse tipo de tratamento. A filosofia da terapia é conservadora: as doses são as menores possíveis, para evitar que o paciente tome remédio desnecessariamente. Mesmo com o auxílio de drogas, os tiques não desaparecem completamente.

Em determinados casos, indica-se a psicoterapia, inclusive com orientação a pais, familiares e professores. É importante que todos estejam bem informados a respeito da doença, suas características e o modo de lidar com o paciente. Deve-se evitar a estigmatização e atitudes superprotetoras, porque a criança pode perceber e manipular a doença para obter o que deseja.

Há relatos de cura com a psicoterapia comportamental. Nesse contexto, a técnica conhecida como reversão de hábito tem se mostrado a mais adequada. Consiste basicamente em ensinar o paciente a perceber quando os tiques vão ocorrer para então tentar suprimi-los, modificá-los ou substituí-los por outro, menos incômodo. Uma manifestação desagradável e embaraçosa, como acenar para pessoas desconhecidas, pode ser modificada, com esforço e treino, para uma atitude mais aceitável ou imperceptível, como passar a mão no cabelo ou no corpo. 

A maioria dos portadores de tiques e síndrome de Tourette tem grande melhora no início da vida adulta, com diminuição dos sintomas ou adaptação a tiques mais estáveis e moderados. A redução mais significativa ocorre por volta dos 20 anos. A evolução, muitas vezes, é instável. A gravidade na infância não indica como será a evolução do quadro. Por isso, na maioria dos casos, a abordagem psicossocial e educacional é o elemento mais importante, porque ajuda o paciente e a família a entenderem os sintomas e aprenderem como lidar com eles, sem a necessidade de medicação.

* Ana Gabriela Hounie é vice-coordenadora do Protoc; Eurípedes Miguel é professor associado do departamento de Psiquiatria e coordenador do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (Protoc) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP.
Contato: protoc@protoc.com.br
(11) 3085-2978
Para saber mais:
http://www.astoc.org
http://www.protoc.com.br

O que são tranqüilizantes? 

* Márcio Antonini Bernik

Tranqüilizantes são uma denominação popular para um grupo de substâncias que atuam, “predominantemente, sobre a ansiedade e a tensão nervosa”. Na prática o termo se refere a medicamentos usados para diminuir a ansiedade, os ansiolíticos, ou para dormir, os hipnóticos.
O uso de ansiolíticos e hipnóticos é tão antigo quanto a medicina. Em escritos de todas as antigas culturas encontram-se relatos sobre o uso de substâncias capazes de produzir um certo grau de sedação, estado em que transcorriam rituais religiosos, mágicos ou mesmo alguns procedimentos “médicos”. Destas substâncias e ervas, o álcool sempre o mais comum. Até hoje é o fármaco mais usado nestas situações “sociais”. 
A história recente dos ansiolíticos e hipnóticos começou com a síntese do ácido barbitúrico por. A.VON BAYER em 1862. No início do século XX os derivados barbitúricos começaram a ser usados como ansiolíticos e hipnóticos. Mais de 2500 derivados do ácido barbitúrico foram sintetizados, dos quais cerca de 50 introduzidos comercialmente. Até a década de sessenta do século passado, foram extensivamente prescritos. Um exemplo de um medicamento barbitúrico ainda muito usado como anticonvulsivante é o fenobarbital (Gardenal).
Na década de 1950, embora os barbitúricos fossem ainda amplamente utilizados, era reconhecida a sua capacidade de induzir tolerância e de causar dependência com o aparecimento de uma síndrome de abstinência tão intensa quanto à do álcool. Outra preocupação ainda maior era o grande risco de morte por envenenamento (como de fato ocorreu com diversas pessoas famosas como a atriz Marilyn Monroe). 
Em 1955 o laboratório Roche sintetizou uma série de compostos que, baseando-se em sua presumida estrutura química, foram julgados inativos e, posteriormente, abandonados. Um destes compostos, o Ro 5-0690 (clordiazepóxido, Librium) foi inadvertidamente enviado para análise quando o laboratório passava por uma limpeza de rotina e suas propriedades farmacológicas sedativas e ansiolíticas foram descritas. 
Depois do desenvolvimento dos benzodiazepínicos, como por exemplo, o clordiazepóxido, o diazepam (Valium), o clonazepam (Rivotril) e o lorazepam (Lorax), o uso dos barbitúricos foi esquecido.
Acredita-se que a grande popularidade que os benzodiazepínicos alcançaram entre os membros da classe médica e na população leiga deva-se à sua eficácia como ansiolíticos e hipnóticos, aliada à margem de segurança por eles oferecida. No início dos anos 60 publicaram-se vários relatos de sujeitos, mesmo crianças que sobreviveram à ingestão de doses maciças destes remédios.
Os ansiolíticos benzodiazepínicos atuam aumentando a atividade de um sistema inibidor muito importante para o funcionamento de nosso cérebro, o sistema GABA-érgico. Este nome deriva do neurotransmissor diretamente envolvido, o GABA (abreviação de “gamma-amino-butyryc acid” ou ácido gama-amino-butírico).
A partir da década de oitenta estudaram-se outros ansiolíticos não benzodiazepínicos, como a buspirona (Buspar). 
Os benzodiazepínicos, se interrompidos abruptamente, podem causar uma síndrome de abstinência com ansiedade, insônia e, em casos mais graves, de pessoas que usavam doses muito altas por longo tempo, até convulsões. Isto caracteriza uma dependência fisiológica ou “física” ao benzodiazepínico. Entretanto mesmo nestas situações, são raras situações de abuso e este problema não pode ser confundido com uma “síndrome de dependência química”. Mais uma vez, basta interromper o uso lentamente, sob orientação médica.

* Márcio Bernik é médico psiquiatra formado pela FMUSP, doutor em Psiquiatria pela FMUSP e Professor Colaborador Médico do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Atualmente coordena o Ambulatório de Ansiedade do IPQ FMUSP. 

* Luis Rohde

O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) caracteriza-se, basicamente, por três sintomas: desatenção, hiperatividade e impulsividade. A primeira descrição do quadro de hiperatividade em crianças foi apresentada pelo médico alemão Heinrich Hoffman, em 1854. Desde então, ocorreram diversas modificações na nomenclatura da síndrome, até se chegar à designação atual do TDAH.

Sinais clínicos

As crianças com TDAH são facilmente reconhecidas. A desatenção consiste numa dificuldade em prestar atenção a detalhes ou na propensão a cometer erros por descuido nas atividades escolares e de trabalho. Também é comum a falta de atenção em tarefas ou atividades lúdicas. O portador do transtorno parece não escutar quando lhe dirigem a palavra, costuma não seguir instruções e não terminar tarefas escolares, domésticas ou deveres profissionais. Normalmente tem dificuldade em organizar atividades e evita ou reluta em envolver-se em exercícios que exijam esforço mental constante. Além disso, o indivíduo é facilmente distraído por estímulos alheios e apresenta esquecimento das atividades diárias.

A hiperatividade constitui-se de hábitos como agitar as mãos ou os pés ou se remexer na cadeira, abandonar o assento na sala de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado, correr ou escalar em demasia, em situações inapropriadas e falar em demasia. Como o portador do TDAH tem dificuldade em brincar ou envolver-se silenciosamente em atividades de lazer, freqüentemente se mantém em constante atividade, como se estivesse “a todo o vapor”.

Já a impulsividade caracteriza-se por atitudes precipitadas, como dar respostas antes que as perguntas tenham sido concluídas, interromper ou se meter em assuntos alheios e não conseguir esperar a vez em filas.

Prevalência

Na população geral, a prevalência do transtorno é de 3% a 6% entre crianças em fase escolar. Estima-se que cerca de 50% desses indivíduos chegarão à idade adulta com sintomas ainda suficientes para o diagnóstico, associados a prejuízos importantes na vida social. O desenvolvimento do quadro de TDAH está associado a um risco significativamente maior de baixo desempenho escolar, repetência, expulsões e suspensões escolares, relações difíceis com familiares e colegas, desenvolvimento de ansiedade, depressão, baixa auto-estima, problemas de conduta e delinqüência, experimentação e abuso de drogas, acidentes de carro e multas por excesso de velocidade. Na vida adulta, as dificuldades de relacionamento, no casamento e no trabalho, também são mais freqüentes.

Embora as causas do TDAH ainda não sejam totalmente conhecidas, a influência genética é demonstrada por estudos com famílias de portadores do transtorno. Provavelmente, vários genes de pequeno efeito determinam a vulnerabilidade do indivíduo ao distúrbio. Assim como a esquizofrenia, não se trata de uma doença com causa única, mas sim de uma síndrome com diferentes origens. Fatores ambientais, com ingestão de álcool e fumo na gravidez e complicações no parto, também podem estar envolvidos na gênese do transtorno.
Estudos científicos mostram que o TDAH está relacionado com uma disfunção cerebral, principalmente nas áreas responsáveis pelo chamado controle inibitório (regiões do córtex pré-frontal e suas conexões com estruturas subcorticais; a participação do córtex parietal posterior, responsável pelo processo de atenção seletiva, também já foi observada). Investigações mais recentes com ressonância magnética demonstram que as alterações nesses locais do cérebro ocorrem desde muito cedo e não se modificam com o desenvolvimento da criança. Assim sendo, esses achados provavelmente não são conseqüências do TDAH em si ou de seu tratamento, mas sim resultados de um distúrbio precoce na maturação do cérebro.
Vale ressaltar que mais de 150 ensaios clínicos bem conduzidos certificam a eficácia do uso de medicamentos no TDAH. Cerca de 70% a 80 % das crianças com o transtorno apresentam uma resposta expressiva, com melhora de pelo menos 50% dos sintomas, ao tratamento medicamentoso, com importante repercussão favorável na suas vidas e de suas famílias.

* Luis Rohde é professor do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS)
Contato: lrohde@terra.com.br

* Márcio Bernik e Guilherme Spadini dos Santos

O termo pânico teve origem na crença dos antigos gregos no deus Pã, considerado guardião dos bosques e florestas. Atribuía-se a ele o poder de paralisar quem encarasse sua imagem assustadora, idealizada com orelhas, chifres, cauda e pernas de bode. Daí a palavra pânico, definida como uma sensação de medo tão intensa que é capaz de entorpecer o indivíduo e de privá-lo do autocontrole por alguns segundos.

Ao longo da vida, muitos irão experimentar esse sentimento. Um grande medo toma conta da pessoa repentinamente. O coração dispara, o ar parece faltar e há um pressentimento que algo muito ruim vai acontecer, mesmo que não se saiba o quê. Em geral, experimenta-se essa sensação diante de situações específicas, muito graves ou associadas à uma ameaça real.

Para quem já sentiu pânico, é tranqüilizador saber que não terá essa sensação novamente, já que ela surgiu apenas em decorrência de uma situação limite. Entretanto, 10% da população podem sofrer crises sem motivo aparente, denominadas crises de pânico. Cerca de 3,5% dessas pessoas sofrem ataques repetidos, o que leva a alterações no comportamento e a um medo intenso de que essas ocorrências se repitam. Esses indivíduos são portadores do transtorno de pânico.

Diagnóstico

O diagnóstico da doença é feito quando o indivíduo é acometido por mais de quatro episódios em um mês. No transtorno de pânico, as crises são freqüentes. Muitas vezes, ocorrem várias no mesmo dia. Em geral, aparecem sem motivo aparente, mesmo quando tudo parece estar bem.
A duração de um episódio de pânico varia bastante, mas tipicamente leva de 30 minutos a uma hora. O pico de ansiedade intensa, em geral, não passa de 10 minutos. Em alguns casos, dura menos de um minuto. A preocupação e a ansiedade que seguem o ataque podem permanecer por horas ou dias, dando a impressão de que a crise é muito demorada. Entretanto, a maioria dos pacientes consegue identificar que o surto, em si, é um período limitado de ápice da ansiedade.

Sinais

Durante o ataque, o paciente pode sentir alguns sinais, como disparo do coração, falta de ar, formigamento, suor nas mãos, palidez, tontura e náuseas. Algumas sensações são difíceis de descrever, como sentir-se “sem chão”, caindo, nas nuvens ou como se não percebesse o próprio corpo. Esses sentimentos são chamados de despersonalização e desrealização.

Além dessas percepções físicas, alguns idéias costumam ocorrer durante a crise de pânico. O mais comum é o paciente pensar que vai morrer naquele instante ou que está sofrendo um infarto ou um derrame. Muitos têm a sensação de que vão enlouquecer. Embora esses pensamentos sejam puramente imaginários, o indivíduo vivencia-os como reais.

Como as crises de pânico são imprevisíveis, o paciente também se sente tenso e preocupado após o surto, pois fica imaginando quando ocorrerá o próximo episódio. Ele pode passar a temer que a crise aconteça, por exemplo, dentro de um ônibus lotado ou de um cinema, em um local onde não há alguém por perto para socorrê-lo ou quando houver tanta gente que ele sinta vergonha de passar mal. Esse sentimento denomina-se ansiedade antecipatória. Mesmo que não haja ataque de pânico, o indivíduo sofre de ansiedade, na expectativa do próximo surto.
Em alguns pacientes, a ansiedade antecipatória torna-se tão forte que eles não conseguem mais enfrentá-la. Deste modo, passam a evitar situações que consideram de alto risco, como sair de casa sozinhos ou mesmo acompanhados Não conseguem mais dirigir, entrar em shoppings ou supermercados, viajar e trabalhar. Esse medo é chamado agorafobia. Nem sempre esse tipo de fobia acompanha o transtorno de pânico, mas essa é uma evolução bastante comum.

Tratamento

A maioria dos casos de transtorno de pânico pode ser tratada com sucesso. A terapia medicamentosa é feito com determinados antidepressivos, e, em algumas ocasiões, com benzodiazepínicos. Quando a agorafobia também está presente, a associação com terapia cognitivo-comportamental costuma melhorar essa resposta. Por se tratar de uma condição crônica, o transtorno de pânico pode voltar após o tratamento. Por isso, ele deve ser de longa duração, levando, em geral, de um a dois anos.

* Márcio Bernik é psiquiatra, doutor em Medicina pela FMUSP, coordenador do Ambulatório de Ansiedade da instituição (Ambam) e professor assistente do Departamento de Psiquiatria da FMUSP; Guilherme Spadini dos Santos é psiquiatra e mestrando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Contato: marcio.bernik@uol.com.br
Para saber mais:
http://www.amban.org.br

* Eurípedes Miguel, Roseli Shavitt e Maria Alice de Mathis

O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) caracteriza-se pelo comportamento alterado devido a obsessões e/ou compulsões. As obsessões são pensamentos, representações mentais ou impulsos repetidos, involuntários e desagradáveis. São reconhecidas como produtos do próprio psiquismo do indivíduo, geralmente estranhos ao conjunto de experiências, conhecimentos e afetos que lhe servem de referência.. Apesar de esforçar-se, a pessoa não consegue eliminar essas idéias de sua consciência.

As compulsões, por sua vez, são comportamentos repetitivos e intencionais, motores ou mentais, que geralmente têm como objetivo diminuir sentimentos desagradáveis decorrentes das obsessões. Podem ser acompanhadas ou não das obsessões.

Para serem considerados como um problema médico, os sintomas das obsessões e das compulsões devem ocupar pelo menos uma hora por dia do indivíduo, causar algum tipo de interferência no desempenho das atividades cotidianas ou provocar sofrimento.

A maioria dos pacientes consegue perceber que as obsessões e compulsões são ilógicas, embora crianças ou portadores de formas mais graves do TOC possam não apresentar tal crítica. Nesse caso, ou quando o indivíduo reconhece apenas parcialmente os seus sintomas, classifica-se o transtorno como “TOC com crítica pobre”.

Obsessões e compulsões

As obsessões e compulsões mais comuns são preocupações com contaminação e agressão e comportamentos de limpeza e verificação, respectivamente. Outros sintomas freqüentes são: preocupação com ordem e simetria, hábito de colecionar objetos, escrupulosidade moral e medo de impulsos sexuais. Uma situação rara, mas que deve ser levada em consideração, é a lentidão obsessiva, em que o paciente demora exageradamente para realizar tarefas diárias, provavelmente devido à indecisão, medo de errar ou causar danos.

Em alguns casos, os pensamentos obsessivos não são acompanhados de ritual compulsivo. Há também compulsões desvinculadas de medos específicos ou estruturados, que apenas aliviam uma sensação ruim de ansiedade ou angústia, ou ainda, de que algo está incompleto ou incorreto. Um exemplo é a necessidade de organizar os livros na prateleira de uma forma simétrica, sem medo ou obsessão associada, apenas pela exigência de sentir que os livros estão visualmente em ordem.

Histórico

Os sintomas do TOC são descritos na literatura médica desde o século XIX, e provavelmente sempre acompanharam o homem. Há 40 anos, foram descobertos tratamentos farmacológicos eficazes para o transtorno, e o problema vem sendo investigado mais profundamente.

Até os anos 50, o TOC era considerado raro, com uma ocorrência estimada em 0,05% na população geral. Atualmente, sabe-se que esse número está em torno de 2% a 3%, ocupando o quarto lugar entre os transtornos psiquiátricos mais freqüentes (perde apenas para as fobias, o abuso de substâncias e a depressão maior).

A causa do distúrbio ainda é desconhecida, mas os especialistas acreditam que sua origem seja múltipla. A idéia mais aceita é que o TOC seja o resultado da interação entre uma predisposição genética, portanto herdada, e fatores ambientais (sociais, infecciosos) e psicológicos. Investigações neurobiológicas sugerem que determinadas regiões cerebrais (denominadas córtex orbital pré-frontal, córtex do cíngulo anterior, gânglios da base e tálamo) estejam envolvidas no mecanismo do transtorno (estudos de neuroimagem em portadores do TOC mostram aumento do metabolismo da glicose, indicando aumento da atividade cerebral, do córtex orbitofrontal e do núcleo caudado).

Os pacientes demoram, em média, 17 anos até receberem um diagnóstico correto, em parte por dificuldade de expor os seus sintomas aos profissionais de saúde. Porém, uma vez reconhecida o transtorno, as chances de melhora com a terapia convencional são de aproximadamente 60% a 80%. Após a suspensão do tratamento, a taxa de recaída é alta, o que pode ser atenuado pela combinação com a terapia comportamental.

Evolução

Na maioria dos casos, o TOC é um transtorno crônico, que pode evoluir com períodos de melhora e piora. A evolução com curso episódico, apenas quando há crises, e remissão completa e duradoura dos sintomas são situações raras. O modo como o distúrbio se desenvolve parece variar em função da idade em que os sintomas começam a se manifestar, tipos de sintomas, desenvolvimento do transtorno, histórico familiar, associação com outros problemas psiquiátricos e fatores sociais e ambientais.

A maioria dos portadores de TOC apresentam sintomas leves e podem levar uma vida normal, com bons relacionamentos afetivos e sociais e desempenhos acadêmico e profissional satisfatórios. Entretanto, as formas mais graves do distúrbio prejudicam significativamente esses aspectos. Menos de 10% dos casos enquadram-se nesse perfil. Alguns pacientes dessa categoria ficam presos em casa realizando seus rituais o tempo todo, tornando-se praticamente incapacitados.

Tratamento

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é o tratamento psicológico mais indicado para casos leves do distúrbio. Para os pacientes com sintomas moderados ou graves, o tratamento farmacológico ou combinado com a TCC é o apropriado.
Os sintomas do distúrbio podem ser controlados com o tratamento medicamentoso e a terapia comportamental. Estudos farmacológicos já mostraram a eficácia de antidepressivos, que atuam como inibidores de recaptação da serotonina, um neurotransmissor presente no cérebro. Pesquisas sugerem que o sistema serotoninérgico (que libera a serotonina) tem um papel central na modulação dos sintomas obsessivo-compulsivos. Portanto, esses antidepressivos são os mais indicados para o TOC. O início do efeito terapêutico desses medicamentos varia de duas a quatro semanas e, após a melhora, costuma-se manter a medicação por pelo menos um ano. A suspensão precoce do tratamento tende a ser seguida de recaídas. Já os antidepressivos que atuam sobre a noradrenalina, um outro neurotransmissor, não teriam o efeito desejado.

Recentemente, foram feitos estudos sobre a aplicação da neurocirurgia em casos de TOC, incluindo técnicas reversíveis e irreversíveis, como a estimulação cerebral profunda. Estes procedimentos interferem nos circuitos neurais provavelmente envolvidos no TOC. No entanto, esses tratamentos são recomendados apenas para pacientes que não respondem aos tratamentos convencionais e estão incapacitados pelo seu transtorno.

* Eurípedes Miguel é professor associado do departamento de Psiquiatria e coordenador do Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (Protoc) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP; Roseli Shavitt é psiquiatra do Protoc; Maria Alice de Mathis é psicóloga do Protoc.
Para saber mais:
http://www.protoc.com.br

* Táki Athanássios Cordás 

A anorexia nervosa é um transtorno caracterizado pela restrição alimentar praticada pelo próprio indivíduo, em decorrência de uma obsessão pela magreza. A doença geralmente se manifesta após uma dieta, devido à insatisfação com o peso e a imagem corporal. Muitas vezes, esse descontentamento é injustificado, mas o paciente quer emagrecer à todo custo, porque teme ser gordo.

Desta forma, o anoréxico elimina de sua dieta os alimentos que julga mais calóricos. No princípio, suprime a ingestão de doces e massas e, à medida que o tempo passa, carnes vermelhas e brancas. A restrição alimentar intensifica-se progressivamente. O indivíduo diminui a quantidade de refeições até chegar ao jejum, que pode durar o dia todo, ou limita-se à uma dieta exígua.

Os portadores do transtorno costumam ter baixa auto-estima e uma idéia distorcida da própria imagem. No cotidiano, consultam o espelho e examinam-se freqüentemente, mantendo uma percepção errônea de estarem gordos e com formas aumentadas, mesmo que já tenham perdido muito peso. Costumam usar roupas largas para disfarçar o corpo, o que faz com que familiares e amigos não percebam sua magreza progressiva.

À medida que o anoréxico emagrece, o organismo pode reduzir seu gasto metabólico, como forma de autoproteção. Então, para acelerar a perda energética, o indivíduo começa a praticar exercícios físicos e jejum, além de usar laxantes ou diuréticos. Alguns pacientes chegam a induzir o vômito para evitar os efeitos de uma refeição ou de uma pequena porção de alimento ingerida.

Nas mulheres, a evolução do quatro leva à amenorréia (ausência de menstruação), devido à desnutrição. Em cerca de 20% dos casos, esse problema precede a percepção do emagrecimento. É preciso atenção caso a paciente esteja no início da adolescência, já que a amenorréia será observada com mais dificuldade. Se o transtorno ocorrer no fim da infância, haverá retardo da menarca (primeira menstruação).

Casos de mães com anorexia nervosa merecem atenção redobrada, já que a paciente pode considerar as formas arredondadas de seu bebê ou das crianças como gordura excessiva e reduzir as refeições de seus filhos.

Bulimia

Outro transtorno alimentar bastante comum é a bulimia nervosa. Assim como na anorexia, há uma excessiva preocupação com o peso e a forma corporal. Na bulimia, porém, o indivíduo ingere rapidamente uma grande quantidade de comida e tem a sensação de perda de controle sobre a alimentação. Para compensar o episódio bulímico e manter o peso sob controle, o bulímico induz o vômito, submete-se a dietas rigorosas e exercícios físicos e automedica-se com diuréticos, inibidores de apetite e laxantes.

A bulimia nervosa geralmente começa com uma preocupação exagerada com o corpo. Neste momento, o paciente pode estar com o peso normal ou ligeiramente acima do adequado. Ele quer perder poucos quilos, mas tem pavor de engordar. Inicia-se uma dieta com restrições a alimentos calóricos, sem a obstinação comum entre anoréxicos. Ao contrário do que ocorre na anorexia, o portador de bulimia nervosa não tem o desejo de emagrecer cada vez mais. Em geral, seu peso está normal ou, em poucos casos, com algum sobrepeso.

Entretanto, com o passar do tempo, o indivíduo fica sensibilizado pela mudança de hábitos alimentares. Num dado momento, a fome torna-se incontrolável e o paciente ingere rapidamente uma quantidade excessiva de comida. Imediatamente, ele se sente culpado e até mesmo com mal-estar físico, devido ao excesso. Ocorre-lhe, então, a idéia de induzir o vômito para não engordar. Essa atitude traz satisfação e alívio momentâneos, e o bulímico acredita ter descoberto uma forma ideal de manter o peso sem restringir a alimentação.

Por outro lado, depois do vômito, o indivíduo tem a sensação de estar fazendo algo fora do normal. Sente-se ansioso, culpado e com baixa auto-estima, o que o leva a retomar a dieta, às vezes de forma mais rigorosa, por acreditar que tem controle sobre a situação. A restrição alimentar ainda maior propicia novos episódios bulímicos, intensifica os vômitos, aumenta a ansiedade e piora a auto-estima. O processo transforma-se, então, em um círculo vicioso extremamente prejudicial.

Os episódios bulímicos podem ser intensos. Alguns pacientes chegam a ingerir uma média de 3 a 4 mil k/cal durante a crise. No fim do dia, de acordo com o número de eventos, a quantidade total de kilocalorias pode chegar a 30 mil. Os alimentos podem ser misturados (sólidos com líquidos e doces com salgados) e consumidos frios ou à temperatura ambiente, devido à extrema voracidade. Em alguns casos, o paciente planeja o episódio com antecedência e abastece a despensa com os alimentos calóricos, considerados proibidos.

O vômito auto-induzido é a maneira mais freqüente de compensação do episódio bulímico, mas também são comuns a prática exagerada de exercícios físicos, que pode causar danos nos músculos e ligamentos, e o uso de laxantes, diuréticos, inibidores de apetite e hormônios tireoideanos. As irregularidades menstruais também podem ocorrer, mas não a amenorréia, que é característica da anorexia.

Epidemiologia

A realização de estudos sobre a freqüência da anorexia e da bulimia na população é dificultada pela recusa de muitos pacientes em procurar ajuda profissional. Apenas os casos de maior gravidade costumam ser diagnosticados, o que pode levar a estimativas inexatas de incidência (número de casos novos na população) e prevalência (ocorrência em determinado grupo).

A prevalência mundial da anorexia está estimada de 0,5% a 3,7%,. Estão incluídas nesse índice as síndromes parciais, ou seja, casos em que os pacientes que não apresentam a doença totalmente desenvolvida, com presença de ciclos menstruais ou perda de peso menos intensa. A anorexia costuma afetar mais as mulheres, numa proporção de aproximadamente dez a 12 casos para cada um entre os homens. As pesquisas também mostram que o distúrbio começa a se manifestar, preferencialmente, no início da adolescência e que a incidência é maior entre indivíduos brancos e pertencentes às classes sócio-econômicas média e alta.

Entretanto, a atividade do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Ambulim) mostra que os pacientes podem pertencer à qualquer camada social. No Ambulim, a prevalência é maior entre atletas, bailarinas e outras profissões que enfatizam a necessidade de indivíduos magros.

As investigações sobre a bulimia nervosa mostram uma prevalência de 1% a 4% da população de síndromes completas. Assim como na anorexia, o transtorno é mais comum entre mulheres: para cada cinco casos femininos, há um masculino. O início da doença costuma ser um pouco mais tardio que na anorexia nervosa, ocorrendo geralmente no fim da adolescência ou no início da fase adulta.

Há algum tempo, a bulimia era descrita como mais freqüente entre indivíduos brancos, de classes economicamente mais favorecidas e países desenvolvidos. Atualmente, verifica-se sua ocorrência em diversas etnias e classes sociais, inclusive nos países em desenvolvimento. Os grupos de risco são semelhantes aos da anorexia: modelos, profissionais da moda, jóqueis, ginastas e boxeadores.

Tratamento

O tratamento da anorexia e da bulimia deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar, com atendimento psiquiátrico, psicológico e nutricional. Durante estágios do tratamento, pode ser necessária a ajuda de outros profissionais, como enfermeiro, acompanhante terapêutico, terapeuta ocupacional, educador físico ou outro profissional. A aliança dessa equipe com o paciente é uma forma de assegurar a adesão à terapia.

As técnicas cognitivo-comportamentais também são instrumentos importantes. Embora a psicoterapia individual ajude nos conflitos psicodinâmicos, não há evidência que algum modelo particular seja mais eficaz no tratamento. A terapia familiar ou de casal deve ser adotada, já que alterações nessa esfera contribuem para a persistência dos transtornos alimentares, principalmente no caso de adolescentes.

A associação da anorexia e da bulimia com outra doença psiquiátrica, como a depressão, é muito comum. No caso dos episódios compulsivos, o uso de antidepressivos pode ser necessário. Devido às complicações clínicas decorrentes dos transtornos alimentares, que envolvem risco de morte, é importante avaliar aspectos físicos e laboratoriais durante o período de acompanhamento.

* Táki Athanássios Cordás é coordenador geral do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Contato: ambulim@ambulim.org.br

Violência e doença mental: fato ou ficção ?

*Wagner F. Gattaz

Em estudos histórico-antropológicos, J. Monahan (1992), Universidade da Virgínia, conclui que ‘a crença de que as doenças mentais estão associadas à violência é historicamente constante e culturalmente universal’. Esta percepção pública tem conseqüências na prática social (estigma) contra indivíduos portadores de doenças mentais. A estigmatização do doente mental é o maior obstáculo para sua reintegração social. Portanto, antes de aceitá-la devemos analisar criticamente, primeiro, se a associação existe de fato, e segundo, qual é a magnitude de seu efeito nos crimes de violência em geral.

Antes quero definir os termos. A expressão doença mental, como tem sido usada na mídia, inclui todo e qualquer desvio do comportamento, desde abuso de álcool e drogas até quadros psicóticos. Em senso estrito (e correto), devemos falar de doença mental quando nos referimos a quadros definidos de alterações psíquicas qualitativas, como por exemplo a esquizofrenia, as doenças afetivas (antes chamadas de psicose maníaco-depressiva) e outras psicoses. Por outro lado, existem alterações quantitativas, como a deficiência mental e os transtornos de personalidade, que representam ‘desvios extremos do modo como o indivíduo médio, em uma dada cultura, percebe, pensa, sente e, particularmente, se relaciona com os outros’. Portanto, não são doenças, mas extremos de um contínuo. Neste sentido usarei estes termos.

Em um estudo epidemiológico na Alemanha, H. Haefner e W. Boeker (1982) encontraram que não havia um excesso de doentes mentais dentre os criminosos violentos da década 1955-1964, quando comparados com a população geral. Encontraram também que a idade média do doente mental criminoso por ocasião do crime era 10 anos maior do que a do criminoso da população geral, sugerindo que a doença mental, ao contrário, retarda a expressão do ato de violência.

Seguiram-se inúmeros estudos sobre a associação doença mental-violência, incluindo a ampla investigação coordenada pelo ‘National Institute of Mental Health’ nos EUA (Epidemiological Catchment Area= ECA, Swanson et al. 1997). Estes estudos não encontraram uma associação, ou apenas uma associação discreta entre doença mental e o risco de cometer crimes de violência. Entretanto, todos eles apontam para dois outros fatores invariavelmente associados à violência: o abuso de substancias tóxicas (álcool e drogas), e a presença do transtorno de personalidade anti-social. Os efeitos de álcool e drogas não surpreendem, visto que ambos enfraquecem o auto-controle e liberam o ato de violência. As características do transtorno de personalidade anti-social já são, em si, predisponentes para atos contra a sociedade: indiferença pelos sentimentos alheios; desrespeito por normas sociais; incapacidade de manter relacionamentos embora não haja dificuldades em estabelecê-los; baixo limiar para descarga de agressão e violência; incapacidade de experimentar culpa e aprender com a experiência, particularmente punição; e propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para o comportamento que levou ao conflito com a sociedade (Classificação Internacional de Transtornos Mentais CID-10).

O grupo de pesquisa liderado por H. Steadman (1998), New York, não encontrou diferença na prevalência da violência em doentes mentais sem abuso de substâncias, comparados com a população geral. O risco de violência em indivíduos da população geral com abuso de álcool ou drogas foi duas vezes maior do que em pacientes esquizofrênicos sem abuso. Este risco é potencializado quando álcool ou drogas coexistem em indivíduo portador de transtorno mental, segundo J. W. Swanson e colaboradores (1997), coordenadores do ECA-Project. O maior risco para expressão de violência ocorre na combinação de abuso de álcool/drogas com transtorno de personalidade anti-social.

Estes achados sugerem que a doença mental em senso estrito contribui muito pouco para a ocorrência de crimes de violência. A magnitude desta contribuição pode ser avaliada pelo estudo de maior impacto sobre doença mental e crime, realizado na Dinamarca e publicado em 1996 por S. Hodgins e colaboradores (1996). Os autores identificaram todos os indivíduos nascidos entre 1944 e 1947 (360.000 indivíduos). Quando estes indivíduos tinham 43 anos de idade, identificou-se através dos registros centrais quais tinham um registro de internações em hospitais psiquiátricos, e quais tinham sido condenados por infrações do código penal. Comparou-se então a freqüência e o tipo de crimes cometidos entre os indivíduos com e sem internação psiquiátrica, assim como entre os diferentes diagnósticos psiquiátricos. Encontrou-se uma maior freqüência de crimes de violência em pacientes que haviam sido hospitalizados do que em indivíduos sem internações psiquiátricas.

Assim, na Dinamarca, indivíduos que foram internados em hospitais psiquiátricos por doença mental tem um risco 4,5 vezes maior de praticar um crime de violência que indivíduos sem internação. Os riscos para outros transtornos aumentam até 8,5 vezes em pessoas com abuso de drogas. Fica claro que álcool e drogas, também em nosso meio um problema de saúde pública, contribuem mais para a violência que as doenças mentais.

Entretanto, estes dados são superestimados: Na Dinamarca existe uma assistência psiquiátrica exemplar. Todo o cidadão tem acesso gratuito a medicamentos e a tratamento psiquiátrico em uma rede de serviços complementares abertos, como ambulatórios, centros de reabilitação, oficinas abrigadas e apartamentos comunitários. Isto possibilita que a maior parte dos pacientes passe a maior parte de suas vidas fora do hospital. A internação fica reservada apenas para os casos mais graves, difíceis de serem tratados nos serviços complementares. J. Monahan e H.J. Steadman (1983) mostraram que pacientes com um comportamento agressivo terão uma chance maior de serem hospitalizados do que pacientes não agressivos com sintomas semelhantes.

Portanto, o critério de seleção para o estudo na Dinamarca, baseado em registros de internação hospitalar, já selecionou, a priori, uma amostra de pacientes mais agressivos do que a média dos doentes mentais, resultando em uma estatística inflacionada do número de crimes de violência. Mesmo com estas reservas metodológicas, os resultados deste estudo falam contra o estereótipo existente, pois mostram que a grande maioria de doentes mentais na Dinamarca (no mínimo 93 porcento, seguramente mais) não é violenta.

Estes dados não podem ser imediatamente importados para o Brasil. É plausível supor que os índices de crimes de violência em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro são maiores que na Dinamarca. Como se trata aqui de criminalidade intencional, portanto consciente, é possível que ela esteja aumentada apenas na população sem doença mental, diminuindo portanto o excesso relativo em doentes. Mas isto é uma hipótese que necessita de verificação experimental.

O fato é que a associação entre doença mental e violência, ao menos na intensidade em que tem sido noticiada, não tem base real. O indivíduo psicótico pode se tornar agressivo se estiver alcoolizado. Aliás, o não-psicótico também.

* Wagner F. Gattaz é Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Diretor do Laboratório de Neurociências (LIM-27)

Referências

Häfner, H. & Böker, W. – Crimes of Violence by Mentally Abnormal Offenders. Cambridge University Press, Cambridge, 1982

Hodgins, S., Mednick, S.A., Brennan, P.A., Schulsinger, F. & Engberg, M. – Mental disorder and crime. Evidence from a Danish birth cohort. Arch Gen Psychiatry 53: 489-496, 1996

Monahan, J. – ‘A terror to their neighbors’: beliefs about mental disorder and violence in historical and cultural perspective. Bull Am Acad Psychiatry Law 20: 191-195, 1992

Monahan, J. & Steadman, H.J. – Crime and mental disorder: an epidemiological approach. In: Tonry, M. & Morrias, N. (eds.) Crime and Justice: Na annual review of Research. The University of Chicago Press, Chicago, pp. 145-189, 1983

Swanson, J., Estroff, S., Swartz, M., Borum, R., Lachicotte, W., Zimmer, C. & Wagner, R. – Violence and severe mental disorder in clinical and community populations: the effects of psychotic symptoms, comorbidity, and lack of treatment. Psychiatry 60: 1-22, 1997